Na Prateleira | As Boas Maneiras: terror nacional expõe racismo e desigualdade

Um filme de terror com lobisomem. Um filme de terror nacional com lobisomem. Um filme de terror nacional com lobisomem que aborda racismo e desigualdade social! Um trabalho complexo, rico e ambicioso dos diretores Juliana e Marcos Dutra teria grandes chances de se perder em alguns desses tópicos ou abordar todos de maneira superficial e pouco operante. Entretanto, mesmo com seus deslizes, As Boas Maneiras é uma grata experiência para os fãs do horror tradicional (com direito ao bom e velho gore e CGI funcional de monstro), sem deixar de lado comentários relevantes sobre racismo, desigualdade, maternidade e trabalho doméstico.

No longa, Clara (Isabel Zuaa), uma enfermeira moradora da periferia de São Paulo, é contratada por Ana (Marjorie Estiano), uma mulher solitária de classe alta que está grávida do primeiro filho. Mesmo tendo sido contratada apenas como babá, Clara acaba sendo responsável pela casa e bem estar da patroa e seu bebê ainda não nascido. Porém, com a evolução da gestação, ela percebe o comportamento de Ana mudar e sua gravidez apresentar sinais cada vez mais perturbadores.

A peculiar relação patroa-empregada doméstica é um tópico já abordado com eficiência pelo cinema brasileiro. Longas como Doméstica (2012) e Que Horas Ela Volta? (2015) conseguiram expor, com sucesso, as problemáticas envolvendo uma relação de trabalho que difere das outras devido às suas semelhanças ao trabalho na época da escravidão. “A minha empregada é como se fosse da família” e outros dizeres comuns em familias de classe média camuflam muitas vezes uma relação de exploração e inferioridade de trabalhadoras que são, em sua maioria, negras e pobres. Em As Boas Maneiras, nos é apresentado inicialmente uma típica relação de trabalho de doméstica e patroa, no qual não existem limites de horários, jornadas de trabalho nem de disponibilidade por parte de Clara. O que diferencia o longa de outros já produzidos no passado é seu apego ao horror sobrenatural e suspense tradicionais, deixando o público sempre em alerta, esperando pelo pior, remetendo a clássicos do gênero, como O Bebê de Rosemary (1968).

 

O entrosamento entre as atrizes Estiano (esquerda) e Zuaa é um dos grandes trunfos do longa.

Outro elemento abordado pela narrativa é o desconforto da maternidade. Mesmo com a ajuda de Clara, Ana sofre não somente com os sintomas físicos da gestação, mas também com a solidão, o estranhamento e a não aceitação de sua própria condição de mãe. Além disso, sua sexualidade enquanto mulher gestante também é trabalhada de maneira não estereotipada, indo contra uma figura mais romantizada e santificada que temos de uma mulher grávida na nossa sociedade. A escolha por uma paleta de cores com tons mais pastéis pendendo para o azul trabalha um interessante contraste entre expectativa e realidade diante da maternagem.

O trabalho do elenco de As Boas Maneiras é muito bom. Marjorie Estiano e Isabel Zuaa impressionam pela química e pela energia que pulsam em cena, especialmente quando estão juntas. Apesar de parecer um pouco robótica demais, Zuaa entrega uma personagem retraída e desconfiada, com um olhar profundo de cuidado e ânsia por desejo e amor. Já Estiano rouba um pouco as atenções na primeira metade do longa com a fragilidade e arrogância de uma mulher privilegiada, mas em situação de vulnerabilidade.

Mesmo tendo tantas surpresas positivas, o longa acaba perdendo parte considerável de sua força na segunda metade, escolhendo abordar um novo núcleo de personagens, bem mais fraco que o primeiro. O final, diferente do esperado, carece de vitalidade e acaba em um nota morna e um pouco perdida.

Mesmo com seus problemas, As Boas Maneiras é ótima experiência para os sedentos por horror nacional e, de quebra, nos coloca pra pensar em problemas sociais um tanto assustadores, seguindo a leva de terrores pós-modernos gringos. Tem coisa melhor?