Na Prateleira | Dogman retrata assimetrias de poder em relações humanas

A relação do homem com o cão data de muito tempo: há mais ou menos 30 mil anos iniciou-se uma associação entre o homem e os primeiros lobos domesticados para fins de sobrevivência mútua. Entre acidentes e mortes acidentais no processo, cá estamos com diversas raças de tamanhos variados (desde pinschers que pesam 4 kg a cachorros gigantes que poderiam nos matar com uma patada/mordida) em uma relação de amizade e obediência; o exato oposto das relações humanas.

O filme Dogman, do italiano Matteo Gorrone, começa com uma cena emblemática: o cuidador de cachorros Marcello (Marcello Fonte) está dando banho e secando um pitbull grande e extremamente agressivo. Magro e franzino, o dono do petshop consegue realizar seu trabalho entre avanços do cão feroz; ao fim da cena, o pitbull está domado e totalmente relaxado, obedecendo a cada ordem do protagonista. De forma muito simbólica, somos apresentados ao personagem executando sua maior habilidade como profissional; contornar situações de total assimetria de forças.

Baseado em um crime horrendo cometido na Itália na década de 80, Dogman retrata os abusos sofridos por Marcello (Marcello Fonte), dono de um petshop e bem quisto por todos, nas mãos de Simoncino (Edoardo Pesce), um ex-pugilista viciado em cocaína. Depois de passar por diversas humilhações e ter sua reputação manchada no bairro em que mora na periferia de Roma, ele trama e executa uma vingança sádica contra Simoncino.

Se antes Matteo Gorrone ficou conhecido por expor as facetas mais cruéis do crime organizado italiano em Gomorra (2008), aqui ele optou por trabalhar, ainda que baseando-se em fatos reais, uma narrativa mais íntima, mas que beira o fantástico graças ao trabalho impressionante de Marcello Fonte, lhe rendendo o prêmio de melhor interpretação marculina em Cannes. Totalmente encurralado em uma rotina de pequenas violências que vão crescendo cada vez mais, ele se adapta ao medo e à covardia para sobreviver aos ímpetos de maldade de Simoncino e para manter uma certa relação amigável com ele. Quando a paz que o personagem tanto preza não consegue ser mantida não importa o preço que ele pague, seus ímpetos de violência se afloram.

 

O medo e a ânsia por ser reconhecido acompanham o personagem Marcello por todo o longa.

 

O trabalho do cast é muito bom. O personagem de Marcello cai como uma luva para o ator, que inspira verdade durante todo o filme. Além da aparência física frágil e pequena, o ator impressiona pela fisicalidade permanentemente amedrontada, sempre se esgueirando e tentando viver nas frestas concedidas por seu algoz, que também é muito marcante. O ator Eduardo Pesce, que dá vida a Simoncino, representa muito bem a violência que permeia praticamente todas as relações sociais e paralisa suas vítimas, deixando-as presas por longos períodos sem revidar. O desequilíbrio claro de poder entre ele e Marcello ultrapassa a aparência física e abrange o reconhecimento social, a visibilidade e a liberdade de ir e vir.

Dogman não deve ser encarado somente como um filme de vingança (apesar de funcionar muito bem quando visto por esse aspecto em particular). A narrativa do longa inclui arquétipos humanos atemporais, que podem ser vividos por qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo, afinal, estar atado à padrões de violência ou ser o causador dela é essencialmente humano.