Do Sul: A Vingança | Crítica Do Sul: A Vingança | Crítica

Do Sul: A Vingança | Crítica

A farsa farsesca do Oeste sul-mato-grossense

Do Sul: A Vingança é um grande feito — por ser o primeiro longa de ficção inteiramente produzido no Mato Grosso do Sul a estrear comercialmente no circuito nacional. Um grito estético e político que reverbera muito além dos limites geográficos da fronteira Brasil-Paraguai-Bolívia. Dirigido por Fábio Flecha e roteirizado em parceria com Edson Pipoca, o filme não se contenta em apenas contar uma história: ele encena um território. É uma declaração de intenções, um manifesto imagético de que o Brasil profundo, tantas vezes marginalizado ou estereotipado, pode também ser vanguarda cinematográfica.

Do Sul: A Vingança | Crítica

À primeira vista, o filme se apresenta como um thriller policial: há um crime, uma busca por vingança, figuras obscuras e reviravoltas. Mas logo nos primeiros minutos, o espectador atento percebe que está diante de uma farsa construída com tintas carregadas e intencionalmente grotescas. O longa se recusa a seguir os trilhos convencionais do gênero, e prefere trafegar pelas rotas esburacadas do absurdo. As figuras que habitam esse sertão fronteiriço — o jagunço filósofo, o pistoleiro místico, o político miliciano — são ao mesmo tempo caricaturas e símbolos. O exagero é deliberado, quase um ato de resistência estilística. Flecha não quer um filme palatável. Quer um filme que lateje, que provoque, que ironize a própria condição do Brasil como um país onde o riso e o horror são indissociáveis.

Não é surpresa, portanto, que a comédia aqui seja tanto elemento de alívio quanto de denúncia. Há algo profundamente brasileiro nessa habilidade de rir diante do caos. As piadas, por mais absurdas que pareçam, apontam para verdades desconcertantes: a promiscuidade entre política e crime, a espiritualidade como disfarce para violência, a normalização do grotesco. A sátira é o disfarce da denúncia — e vice-versa. E é nesse terreno ambíguo que o filme floresce. Como se construísse um universo próprio, uma realidade paralela onde tudo é hiperbólico, mas nada é gratuito. Tudo é encenado com a consciência de que o país real já ultrapassou qualquer limite de plausibilidade.

O que mais impressiona, porém, é a capacidade do longa de extrair grandeza com um orçamento que, para os padrões do cinema, é modesto: R$ 397 mil. Com esse valor, muitos mal produzem um curta. Flecha, Sozza e equipe conseguiram não apenas rodar um longa, como também alcançar uma estética coesa, uma narrativa provocante e um acabamento técnico que, mesmo com falhas pontuais, não compromete a experiência. A mixagem de som é, talvez, o ponto mais frágil — em especial nas cenas de diálogo sobre música ambiente —, e algumas sequências de ação se resolvem com cortes bruscos, que denunciam restrições orçamentárias. Mas mesmo essas limitações acabam por dialogar com a proposta do filme, que em muitos momentos se alimenta da precariedade como estética: é um cinema sujo, rústico, violento e debochado. Não é para todos. Mas é impossível ignorá-lo.

O reconhecimento internacional não veio por acaso. Vencer o Los Angeles Film Awards como Melhor Longa Independente e figurar como finalista no World Film Festival, em Cannes, não é pouco para um filme nascido longe dos grandes centros, feito à margem, mas com coragem e assinatura. Esses prêmios apenas endossam o que já é evidente para quem assiste ao filme com olhos abertos: trata-se de uma obra singular, que não pede licença para existir, mas que se impõe com personalidade e ousadia. O cinema brasileiro precisa de mais Do Sul: A Vingança — obras que desafiem o eixo, que desobedeçam aos cânones, que se permitam ser excessivas para encontrar a verdade que há no exagero.

Ambientado na fronteira trinacional, o longa é um western tropical, um épico de botas de couro, chapéu e balas de festim. Mas é também uma crônica sobre o Brasil de hoje — ou talvez de sempre —, onde o poder se disfarça de fé, e a justiça é feita com a ponta do facão. Ao transformar o Mato Grosso do Sul em cenário de lenda, Flecha e Pipoca inscrevem o estado no mapa simbólico do cinema nacional com o peso de quem sabe que o interior também é centro, e que as histórias contadas do lado de cá da fronteira têm fôlego — e pólvora — para cruzar oceanos.

Do Sul: A Vingança é uma provocação. E, sobretudo, uma promessa: de que o Brasil tem muitas vozes, e elas já não pedem passagem — elas vêm cavalgando. Com distribuição da Kolbe Arte, o longa está em cartaz nos cinemas.

2.5

REGULAR

Do Sul: A Vingança é uma provocação. E, sobretudo, uma promessa: de que o Brasil tem muitas vozes, e elas já não pedem passagem — elas vêm cavalgando. Com distribuição da Kolbe Arte, o longa está em cartaz nos cinemas.