Animale | Crítica Animale | Crítica

Animale | Crítica

O instinto, o corpo e a fúria da arena

Há algo de visceral em Animale, segundo longa-metragem da diretora francesa Emma Benestan, que transcende a própria narrativa e nos mergulha em uma experiência quase sensorial, onde o som da carne cortando o ar e o odor da terra molhada tornam-se quase palpáveis. Encerrando a Semana da Crítica de Cannes em maio de 2024, o filme se impõe não apenas como mais uma incursão pelo suspense europeu contemporâneo, mas como uma obra que rasga o tecido da convenção com uma brutal delicadeza. Ao explorar os limites entre o humano e o animal, entre o controle e o instinto, Benestan constrói um estudo de personagem enraizado no body horror, mas com uma assinatura autoral que a destaca como uma das vozes mais interessantes do cinema francês recente.

Animale | Crítica

Ambientado na região de Camargue, no sul da França, o longa utiliza a corrida de touros tradicional – diferente das sangrentas touradas espanholas – como palco simbólico de uma disputa muito mais profunda: a da mulher contra as imposições patriarcais em espaços historicamente masculinos. Aqui, o corpo torna-se o primeiro campo de batalha. Nejma, interpretada com intensidade e nuances por Oulaya Amamra, é uma jovem que não apenas desafia a ordem imposta, mas questiona sua própria identidade dentro de um sistema que a reduz à fragilidade. Em um ambiente onde homens medem sua coragem diante de animais selvagens, Nejma desafia tanto as expectativas sociais quanto os próprios limites físicos, movida por um desejo de pertencimento que, aos poucos, vai se tornando algo mais primal, mais feroz.

O que torna Animale tão instigante é a maneira como Benestan entrelaça elementos do drama com o suspense psicológico e o horror corporal de maneira quase orgânica. O clima de tensão é meticulosamente construído, não apenas nas ameaças físicas das arenas, mas nas relações interpessoais, nos silêncios, nos olhares enviesados e nos rumores sussurrados sobre um touro selvagem à solta – uma metáfora que cresce ao longo do filme, tornando-se tão real quanto simbólica. O corpo de Nejma começa a se transformar, a se curvar aos impulsos de uma natureza que ela própria desconhecia. E aqui reside a grande força do filme: ao invés de optar pelo choque gratuito ou por efeitos escatológicos, Benestan conduz o horror de forma sutil, mas profundamente inquietante, como se a protagonista estivesse sendo lentamente tomada por uma força ancestral, algo que reside sob a pele e que precisa ser libertado.

A performance de Oulaya Amamra é, sem dúvida, um dos grandes trunfos da obra. Sua presença em cena é magnética, e a forma como ela traduz a metamorfose física e emocional de Nejma confere uma autenticidade rara ao processo de transformação. Há momentos em que o espectador quase esquece estar diante de uma ficção: os tremores, os olhos arregalados, a postura corporal que se animaliza progressivamente, tudo isso é trabalhado com uma entrega notável. A direção de Benestan colabora para isso ao construir planos fechados, quase claustrofóbicos, que nos obrigam a encarar cada mudança, cada expressão, cada oscilação entre o medo e o desejo de transcendência.

Visualmente, o longa aposta em uma fotografia escura, carregada, que, embora por vezes excessiva, serve a uma proposta bastante clara: representar o sombrio da paisagem de Camargue e o abismo emocional no qual Nejma mergulha. A escuridão não é apenas estética, mas existencial. Ainda assim, é justo dizer que em alguns trechos essa escolha pesa demais, obscurecendo detalhes e prejudicando o ritmo visual da narrativa. Contudo, é um risco assumido que contribui para a imersão em um mundo que parece se afastar da racionalidade e se entregar ao caos da natureza indomada.

O desfecho, longe de buscar reviravoltas fáceis, opta por um lirismo quase trágico. Benestan conclui sua história com uma nota poética que ecoa a favor da defesa animal, mas sem jamais soar panfletária. O gesto final de Nejma é, ao mesmo tempo, um grito de liberdade e um pedido de reconexão com a essência mais pura da existência. Não é à toa que o filme termina em silêncio – um silêncio que reverbera, que incomoda, que nos faz pensar sobre os limites que impomos aos corpos e às vontades, sobretudo quando esses corpos são femininos.

Animale é, acima de tudo, um filme sobre transformação. Não apenas física, como propõe o body horror, mas existencial, política e simbólica. Emma Benestan entrega uma obra corajosa, que não tem medo de incomodar, de desafiar expectativas e de provocar reflexões profundas. Em tempos em que o cinema frequentemente opta por narrativas palatáveis e personagens fáceis de amar, Animale se impõe como uma experiência crua, desconfortável e absolutamente necessária. Um filme que, como os touros que retrata, não se deixa domar.

Com distribuição da Pandora Filmes, Animale estreia amanhã nos cinemas brasileiros.

3.5

BOM

Animale se impõe como uma experiência crua, desconfortável e absolutamente necessária. Um filme que, como os touros que retrata, não se deixa domar.