Um Completo Desconhecido | Crítica Um Completo Desconhecido | Crítica

Um Completo Desconhecido | Crítica

A essência indecifrável de Bob Dylan
Divulgação/Searchlight Pictures

James Mangold retorna ao gênero musical com Um Completo Desconhecido, e, mais uma vez, comprova seu talento em construir narrativas que fogem dos clichês convencionais das cinebiografias. Se em Johnny & June (2005) ele explorou a complexidade do relacionamento entre Johnny Cash e June Carter sob uma ótica emocional e musicalmente vibrante, aqui, Mangold evita a tradicional trajetória ascendente e descendente de um astro para focar na transformação artística de Bob Dylan nos anos 1960. O filme não tem pressa em explicar quem é Dylan; pelo contrário, mergulha em seu mistério, capturando a inquietação do jovem músico, que jamais se prendeu a um único gênero ou rótulo. O longa entende que Dylan não pode ser reduzido a um discurso linear, e é essa abordagem que torna Um Completo Desconhecido tão fascinante.

Um Completo Desconhecido | Crítica

Baseado no livro Dylan Goes Electric!, de Elijah Wald, o filme se concentra no período de ascensão de Dylan no Greenwich Village, um caldeirão cultural e musical onde a cena folk pulsava com intensidade. Mangold nos transporta para essa Nova York efervescente, onde artistas, poetas e ativistas sociais se encontravam para trocar ideias e transformar a música em manifesto. Dylan chega como um jovem de Minnesota com um violão e um timbre rouco, captando a atenção de todos ao seu redor. A câmera passeia pelos cafés esfumaçados e palcos improvisados, remetendo aos registros fotográficos da época. Esse senso de autenticidade é reforçado pelo design de produção, que recria com precisão a aura boêmia do West Village.

O que distingue Um Completo Desconhecido das cinebiografias tradicionais é sua recusa em construir uma narrativa mastigada sobre Dylan. Ele não é retratado como um gênio inquestionável ou um mártir da música, mas sim como um artista em constante transmutação. A decisão de eletrificar seu som e se afastar da pureza do folk, vista como uma “traição” por muitos de seus seguidores, é o ponto de inflexão do filme. Mangold conduz essa transição com sensibilidade, evitando julgamentos e se concentrando na angústia criativa de um músico que se recusa a ser definido por expectativas alheias.

Timothée Chalamet entrega uma atuação digna de aclamação. Sua preparação de cinco anos para o papel transparece em cada gesto, em cada olhar e, principalmente, na forma como ele interpreta as canções. Chalamet não busca imitar Dylan, mas sim incorporar sua energia errática e magnética. O fato de ele mesmo cantar e tocar nos números musicais adiciona uma camada de veracidade que poucos atores conseguem atingir em cinebiografias musicais. A decisão da Academia de ignorá-lo como favorito ao Oscar, mesmo após a vitória no SAG Awards, soa como um reflexo da resistência em premiar performances que fogem das caricaturas convencionais de grandes figuras da música.

O elenco de apoio também brilha. Monica Barbaro impressiona como Joan Baez, capturando não apenas o talento musical da cantora, mas também sua conexão profunda (e muitas vezes conflituosa) com Dylan. Edward Norton, como Pete Seeger, traz um tom paternal e idealista à trama, enquanto Elle Fanning, no papel de Sylvie Russo (personagem com o nome alterado a pedido do próprio Dylan), é um dos destaques emocionais do filme. Sua personagem sintetiza a complexidade dos relacionamentos de Dylan, que oscilavam entre a admiração e a frustração. Boyd Holbrook surge brevemente, mas com presença marcante, como Johnny Cash, enquanto Scoot McNairy emociona na pele de Woody Guthrie, o grande ídolo de Dylan.

Se há um ponto em que Um Completo Desconhecido poderia se aprofundar mais, seria na contextualização política e social da época. O roteiro aborda os acontecimentos históricos que influenciaram Dylan de maneira superficial, através de transmissões de rádio e telejornais. Considerando que suas composições emergiram diretamente do caos político dos anos 1960, essa abordagem soa um tanto limitada. Um olhar mais aprofundado sobre os eventos que moldaram suas letras poderia enriquecer ainda mais a experiência.

Porém, o grande mérito do filme é justamente não tentar “explicar” Bob Dylan. A verdade é que ninguém jamais conseguiu compreendê-lo por completo — nem seus fãs, nem seus amigos, nem seus críticos. Um Completo Desconhecido abraça essa indecifrável essência do artista, optando por não responder quem Dylan realmente é, mas sim mostrar como ele revolucionou a música ao se recusar a ser enquadrado. Com uma direção sensível, performances arrebatadoras e um respeito genuíno pela arte do biografado, Mangold entrega um filme que transcende a narrativa convencional de “ascensão e queda” e nos lembra que, no fim das contas, Bob Dylan é um enigma que continuará desafiando qualquer tentativa de definição.

4

ÓTIMO

Um Completo Desconhecido abraça essa indecifrável essência do artista, optando por não responder quem Dylan realmente é, mas sim mostrar como ele revolucionou a música ao se recusar a ser enquadrado.