Raul Seixas: Eu Sou | Crítica Raul Seixas: Eu Sou | Crítica

Raul Seixas: Eu Sou | Crítica

Um manifesto audiovisual sobre liberdade, loucura, arte e transcendência
Divulgação/Globoplay

Desde os primeiros segundos de Raul Seixas: Eu Sou, a sensação que nos atravessa é a de que estamos diante não apenas de uma série biográfica, mas de uma experiência sensorial que nos convida a entrar na mente inquieta de um dos maiores ícones da música brasileira. Longe das fórmulas tradicionais de cronologia e reverência, a produção do Globoplay, com direção de Paulo e Pedro Morelli, ousa brincar com o tempo e a memória, abraçando o caos e a genialidade que fizeram de Raul Seixas uma figura absolutamente única. Com oito episódios, a obra escancara as contradições, dores, delírios e epifanias de um artista que sempre caminhou na corda bamba entre o sagrado e o profano, o popular e o erudito, o marginal e o mítico.

Raul Seixas: Eu Sou | Crítica

Ravel Andrade, em uma das atuações mais intensas e transformadoras da teledramaturgia recente, não interpreta Raul — ele incorpora. É como se o espírito do “Maluco Beleza” tivesse voltado para viver mais uma vez seus próprios fantasmas. Andrade não se limita a reproduzir os trejeitos ou a entonação vocal do cantor: ele mergulha nas entranhas do personagem, dando vida às inquietações filosóficas, à busca desenfreada por liberdade e à autodestruição progressiva de um homem que nunca soube viver sob as amarras da normalidade. O espectador é levado por essa performance visceral a revisitar, com um novo olhar, momentos já conhecidos da trajetória de Raul e a descobrir camadas inéditas de seu universo interior.

A construção narrativa da série é um acerto absoluto. Fugindo da linearidade comum nas cinebiografias, os Morelli nos transportam por uma colagem de memórias, alucinações e episódios reais que se mesclam em um fluxo onírico e rebelde — tão rebelde quanto o próprio Raul. O início, que apresenta o pequeno Raulzito (vivido com doçura por Pedro Burgarelli), já planta a semente da inquietação. A paixão precoce por literatura, cinema, rock’n’roll e pelas estrelas do céu revela um garoto determinado a romper com o destino comum. Essa infância sensível e quase mística não apenas humaniza Raul como também antecipa os elementos que moldariam sua mitologia pessoal.

A chegada de João Pedro Zappa como Paulo Coelho eleva a série a outro patamar. A química entre Ravel e Zappa é pulsante, e juntos eles recriam uma das parcerias mais emblemáticas — e por vezes perturbadoras — da música brasileira. A série acerta ao explorar não só as composições revolucionárias da dupla, mas também sua imersão no ocultismo e no pensamento libertário, incluindo cenas como a criação da “Sociedade Alternativa” e o icônico encontro com uma nave espacial, que transcende a realidade e adentra o campo simbólico e metafísico. Essas passagens, tratadas com sutileza e respeito ao delírio criativo dos dois, evitam o deboche fácil e reconhecem a potência cultural dessas viagens esotéricas como parte fundamental da obra raulseixista.

Ao revisitar momentos emblemáticos como o Festival da Canção e o Phono 73, a série não apenas celebra os feitos musicais de Raul, mas também sua postura artística desafiadora. É frustrante, no entanto, que a trilha sonora — tão central à identidade do artista — tenha sido tratada com certa economia narrativa. Tirando a performance completa de “Let Me Sing, Let Me Sing”, as demais sequências musicais são truncadas, interrompidas antes de gerar o impacto que poderiam ter. Essa decisão criativa, ainda que compreensível dentro da lógica dramática da série, acaba por empobrecer a força sensorial que a obra poderia alcançar com mais números musicais completos e bem encenados.

Na esfera pessoal, Raul Seixas: Eu Sou não poupa o ídolo. A série mostra com clareza a autodestruição, os conflitos com amigos e as relações afetivas marcadas por abandono e ressentimento. Amanda Grimaldi, Caroline Abras, Julia Stockler e Chandelly Braz compõem com dignidade as mulheres que viveram — e sofreram — ao lado do cantor. Em especial, Edith, vivida por Grimaldi, recebe o destaque necessário para revelar não apenas os dramas conjugais, mas também o impacto da decadência emocional e física de Raul sobre os que o rodeavam. A série não canoniza, mas também não demoniza — apresenta Raul em sua inteireza, com todas as suas virtudes e falhas expostas ao público.

Tecnicamente, o projeto é um primor. A direção de arte e o figurino de Andrea Simonetti são essenciais para a imersão. Desde as roupas psicodélicas até os detalhes dos cenários e maquiagens, tudo respira autenticidade e excentricidade. A fotografia reforça o clima de delírio e nostalgia, com tons alaranjados e esfumaçados que parecem emanar diretamente dos anos 70. O cuidado estético colabora para que cada episódio seja uma viagem sensorial, capaz de evocar a aura mística e contestadora que Raul carregava — e que até hoje fascina diferentes gerações.

Raul Seixas: Eu Sou é mais do que uma série sobre um cantor famoso. É um manifesto audiovisual sobre liberdade, loucura, arte e transcendência. É a tentativa de capturar a alma de um homem que se recusou a ser engolido pela máquina e pagou um preço alto por isso. A produção do Globoplay não se propõe a contar toda a história de Raul Seixas — e talvez nem devesse —, mas sim a evocar seu espírito, sua rebeldia e sua poesia. Mesmo com seus tropeços, é uma das mais belas e ousadas homenagens já feitas ao “pai do rock brasileiro”.

Assistir a essa série é como ouvir um disco de Raul: você pode até não entender tudo o que está sendo dito, mas sente que algo ali pulsa mais forte que a lógica — é a essência da liberdade gritando no meio da madrugada.

3.5

BOM

Assistir a essa série é como ouvir um disco de Raul: você pode até não entender tudo o que está sendo dito, mas sente que algo ali pulsa mais forte que a lógica — é a essência da liberdade gritando no meio da madrugada.