O cinema documental sempre teve um poder transformador, mas poucos filmes conseguem aliar o peso da verdade a uma narrativa tão visceral e inquietante quanto Quatro Paredes. Indicado ao Oscar 2025, o filme adapta as memórias de Shiori Itō, Black Box Diaries, um relato angustiante sobre sua luta para responsabilizar Noriyuki Yamaguchi, um jornalista influente com conexões diretas ao ex-primeiro-ministro Shinzo Abe. A obra, além de ser um registro pessoal doloroso, transcende a experiência individual para se tornar um manifesto contra um sistema jurídico retrógrado que, há mais de um século, falha em proteger as mulheres do Japão.
Desde o primeiro minuto, Quatro Paredes prende o espectador na claustrofobia da experiência de Itō, não apenas no abuso em si, mas no trauma subsequente de precisar provar algo que, para qualquer vítima, deveria ser inquestionável. Seu agressor, Noriyuki Yamaguchi, não é um homem comum: trata-se de um jornalista poderoso, ligado ao ex-primeiro-ministro Shinzo Abe, cuja influência poderia ter silenciado qualquer denúncia. Mas Itō, em um ato de coragem quase suicida, expôs sua história e enfrentou uma cultura que pouco discute crimes sexuais. O documentário, então, se desdobra entre a jornada emocional de Itō e os aspectos processuais de seu caso, criando um retrato devastador não apenas de um crime, mas de uma estrutura que insiste em revitimizar quem ousa buscar justiça.
A escolha narrativa do documentário, sempre em primeira pessoa, amplifica a sensação de impotência e revolta. Não há distanciamento: estamos o tempo todo ao lado de Itō, sentindo seu desgaste físico e emocional enquanto enfrenta julgamentos não apenas nos tribunais, mas também na arena da opinião pública. O Japão, que raramente discute esses crimes, reage com desconfiança, machismo e, em alguns casos, puro ódio. O filme não se furta a mostrar as mensagens de assédio que a jornalista recebe, as ameaças e os comentários que tentam desacreditá-la, reforçando como a cultura da impunidade se enraíza na própria percepção social do abuso.
Mas Quatro Paredes não se resume ao horror. Existe, em sua essência, uma celebração da resiliência e da busca pela verdade. Em meio às gravações de ligações tensas com a polícia, às imagens de câmeras de segurança que registram a frieza do sistema e às entrevistas com autoridades que falham vergonhosamente em proteger as vítimas, o filme encontra tempo para momentos de introspecção, nos quais Itō se permite sentir e compartilhar sua dor. Seu trauma não é tratado como um conceito abstrato, mas como algo vivo, que se manifesta em sua rotina, em suas expressões, no peso que carrega no olhar.
A montagem do documentário é um espetáculo à parte. Alternando entre imagens de arquivo, trechos do julgamento e cenas mais intimistas da protagonista, a diretora constrói um thriller realista, que se aproxima da estrutura de uma investigação jornalística, mas sem perder de vista a humanidade de Itō. A câmera, por vezes estática, por vezes nervosa, nos coloca dentro das quatro paredes que aprisionam a vítima, mas que, paradoxalmente, também simbolizam sua luta para derrubá-las.
No fim, Quatro Paredes é um ato de resistência, um grito de justiça em um país que há mais de cem anos não revisa suas leis sobre abuso sexual. O impacto do filme transcende o cinema e se insere no debate público, servindo como um chamado à mudança. E, ainda que o desfecho traga um certo alívio com a vitória de Itō, o gosto é amargo. Porque sabemos que, para cada Shiori Itō que consegue ser ouvida, inúmeras outras permanecem em silêncio, aprisionadas em suas próprias quatro paredes.
EXCELENTE
Quatro Paredes é um ato de resistência, um grito de justiça em um país que há mais de cem anos não revisa suas leis sobre abuso sexual. O impacto do filme transcende o cinema e se insere no debate público, servindo como um chamado à mudança.