Ler é Bom, Vai | O Oceano no Fim do Caminho, de Neil Gaiman

A mitologia fez eu me apaixonar por Neil Gaiman, com sua escrita detalhada e simples que consegue manter a atenção de seus leitores até o final do epílogo. O autor está de volta ao Ler é Bom, Vai! com um livro pequeno, diferente do que estamos acostumados, mas com um conteúdo tão denso e profundo quanto o oceano da família Hempstock. Recebi o exemplar em questão de um amigo, também apaixonado pelo trabalho de Gaiman e que me recomendou O Oceano no Fim do Caminho por saber que me interesso por ficção. Mesmo sendo um livro curto, o autor não cansa de me surpreender em relação ao conteúdo, cheio de lições a serem aprendidas.

“Foi há quarenta anos, agora ele lembra muito bem. Quando os tempos ficaram difíceis e os pais decidiram que o quarto do alto da escada, que antes era dele, passaria a receber hóspedes. Ele só tinha sete anos.
Um dos inquilinos foi o minerador de opala. O homem que certa noite roubou o carro da família e, ali dentro, parado num caminho deserto, cometeu suicídio. O homem cujo ato desesperado despertou forças que jamais deveriam ter sido perturbadas. Forças que não são deste mundo. Um horror primordial, sem controle, que foi libertado e passou a tomar os sonhos e a realidade das pessoas, inclusive os do menino.

Ele sabia que os adultos não conseguiriam — e não deveriam — compreender os eventos que se desdobravam tão perto de casa. Sua família, ingenuamente envolvida e usada na batalha, estava em perigo, e somente o menino era capaz de perceber isso. A responsabilidade inescapável de defender seus entes queridos fez com que ele recorresse à única salvação possível: as três mulheres que moravam no fim do caminho. O lugar onde ele viu seu primeiro oceano.”

Não sabemos o nome do protagonista – voltei os capítulos diversas vezes para ver se tinha deixado passar -, mas entendemos sua história desde o princípio, além de nos encontrarmos em muitos dos pensamentos do menino. Apesar de apresentar como um homem de meia-idade, durante boa parte da trama é um jovem de 7 anos, que acabou de se mudar com os pais e a irmã para uma cidadezinha no interior da Inglaterra. Devido a problemas financeiros, sua família passa a alugar o quarto do garoto para hóspedes, os mais estranhos possíveis. O que parecia ser uma narrativa pacata se transforma em um mistério carregado de informações sombrias e complexas, principalmente quando o minerador de opala, descrito na sinopse, é encontrado morto no carro da família. Era o que faltava para a escuridão ser liberada na pequena cidade e na cabeça da pequena criança. que apesar da pouca idade, tem ideias dignas de um grande aventureiro. É então que entra em ação a família mais divertida e curiosa que alguém poderia ter, as Hempstock, composta por três mulheres pra lá de estranhas e companheiras (Lettie, Ginnie e a velha senhora).

Quando a trama começa a se desenrolar, percebemos que o livro “fofo” ficou só na imaginação, chegando a parecer um conto dos irmãos Grimm. Ao retornar para sua velha cidade, o menino – agora um homem – percebe que suas lembranças da infância quase desapareceram, mesmo ele tendo plena consciência de que um dia já existiram. Cerca de 40 anos se passaram, mas ao passar pela sua antiga casa ele se recorda da velha amiga que morava no final da rua, em uma fazenda onde um oceano existia no quintal. Tomado pelo impulso e pela curiosidade, ele resolve visitar o local e para sua surpresa, a mais velha das três Hempstock encontra-se sentada lá. Os minutos passam e uma enxurrada de recordações começa a surgir na mente do protagonista, tanto as boas quanto as ruins. O livro começa a tomar forma, assim como o conto presente em suas páginas.

” – Ninguém realmente se parece por fora com o que é de fato por dentro. Nem você. Nem eu. As pessoas são muito mais complicadas que isso. É assim com todo mundo.”

O que mais me impressionou na história foi a riqueza de detalhes descritos por Gaiman, fundamentais para uma maior compreensão do cenário abstrato com que nos deparamos. Desde a minuciosa caracterização de Ursula Monkton até as cores da opala, o autor faz questão de deixar seu leitor a par de tudo aquilo que está em suas ideias, trazendo-nos para perto do livro a cada página virada. A jornada enfrentada pelo menino é diferente de qualquer coisa que ele – e nós – poderia imaginar, enfrentando medos de infância que aumentaram ainda mais ao se mostrarem reais. Como já é clássico de suas obras, o autor procura nos ensinar uma lição por meio de suas palavras. Em O Oceano no Fim do Caminho, temos um clássico exemplo das vezes em que, quando crianças, procurávamos explicar as coisas aos adultos e éramos ignorados (ou riam e achavam bonitinho). O garoto tenta, mais de uma vez, alertar a todos sobre a criatura vil que assombra a cidade, mas encontra conforto nas palavras das mulheres Hempstock.

Assim como nas fábulas, o “vilão” desperta o pior lado das pessoas e revela aquilo que estava escondido no âmago de cada um. A traição no casamento, a raiva com o filho, o descaso por parte dos pais e principalmente a negligência em relação ao menino, são apenas poucas das coisas destacadas no livro. Para entendermos o ponto de vista do protagonista, precisamos voltar a ser crianças e enxergar com esses olhos o que está em nossa frente. Gaiman escreveu mais um excelente trabalho, que apesar de ter sido escrito em 2013, será eternamente atual.

“Adultos não parecem com adultos por dentro também. Por fora, são grandes e descuidados e sempre sabem o que estão fazendo. Por dentro, parecem com quem sempre foram. A verdade é que não existem adultos. Nenhum nesse mundo inteiro.”

  • Excelente
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