Após o belíssimo e sensível Shamisen: Canções do Mundo Flutuante, Guilherme Petreca e Tiago Minamisawa retornam com Kabuki: Primavera, Outono, Inverno, Verão, reafirmando sua maestria em conjugar poesia visual, pesquisa histórica e introspecção emocional. Mas ao contrário do que o título possa sugerir, o que se desenrola nas páginas dessa obra não é uma simples travessia pelas estações do ano ou uma reverência à estética tradicional do teatro japonês. O que temos diante de nós é uma odisseia interna — uma viagem pela psique, pelo corpo e pelas máscaras que a sociedade, a cultura e a história impõem sobre o indivíduo. Kabuki é uma narrativa que respira, pulsa e se reinventa a cada ato, levando o leitor por um caminho de delicadezas e rupturas, de silêncios que gritam e cores que sussurram verdades incômodas.
Original da editora Pipoca & Nanquim, a história é dividida em quatro atos, cada um ancorado simbolicamente em uma estação do ano, o enredo se desdobra como uma performance lírica onde tempo, identidade e tradição colidem. A protagonista, que leva o nome da obra e da arte cênica japonesa que inspira a narrativa, não é apenas uma figura central — ela é a própria metáfora do ser fragmentado, da identidade em conflito entre o desejo de libertação e o medo paralisante do juízo externo.
Kabuki, a personagem, vive em um mundo onde o real se curva ao mítico: aves de fogo, dragões imemoriais e youkais surgem como manifestações simbólicas das dúvidas, traumas e esperanças que habitam sua alma. É nesse terreno instável entre o sonho e o delírio que a narrativa floresce, evocando não apenas o teatro, mas também o haicai, a pintura sumi-e e o imaginário ancestral nipônico como linguagem.
A parceria entre Petreca e Minamisawa atinge aqui um novo patamar. O primeiro, com sua arte de traços delicados e composições que lembram aquarelas em suspensão, demonstra total domínio das atmosferas — cada estação do ano ganha uma identidade cromática e rítmica própria, refletindo o estado emocional da personagem. Já Minamisawa, roteirista, oferece uma estrutura narrativa que remete à arquitetura ritualística do teatro kabuki, utilizando repetições, pausas e reviravoltas coreografadas como se o quadrinho, de fato, fosse uma encenação. A influência das artes cênicas tradicionais japonesas — como o bunraku (teatro de bonecos), o noh (teatro de máscaras) e o próprio kabuki — não está apenas na estética, mas também na estrutura narrativa e na construção simbólica dos personagens. Trata-se de uma verdadeira carta de amor a um patrimônio cultural imaterial que, aqui, ganha nova vida.
Importante também destacar o rigor e a profundidade da pesquisa por trás da obra. O desenvolvimento em paralelo com um curta-metragem homônimo dirigido por Minamisawa enriquece ainda mais a experiência — Kabuki não é apenas um quadrinho, mas parte de um projeto transmídia sensível e sofisticado. Essa abordagem não apenas expande os limites do que entendemos como narrativa gráfica, como também confere à obra um caráter híbrido, em que palavra, imagem e movimento se complementam para oferecer uma experiência estética completa. Em um tempo em que tantos quadrinhos tentam se encaixar em moldes comerciais previsíveis, é revigorante ver autores brasileiros apostando em caminhos autorais, corajosos e culturalmente informados.
No coração da história, no entanto, está a temática universal da autodescoberta. Kabuki é, antes de tudo, sobre alguém tentando descobrir quem é por trás das máscaras — e o que acontece quando essas máscaras começam a ruir. É sobre confrontar fantasmas (internos e ancestrais), abraçar as próprias contradições e, finalmente, se permitir dançar conforme o próprio ritmo. A mensagem da obra é poderosa porque fala diretamente ao nosso tempo: um tempo em que tantos buscam pertencimento, identidade e voz em meio a um mundo que exige performances incessantes. Nesse sentido, a personagem Kabuki nos convida, não apenas a acompanhá-la, mas a nos reconhecermos nela.
Kabuki: Primavera, Outono, Inverno, Verão é uma obra que emociona, instiga e deixa cicatrizes belas no leitor. Uma leitura que pede contemplação, que exige silêncio e entrega. Ao final, não somos mais os mesmos — e essa, afinal, é a maior prova da força transformadora da arte. Guilherme Petreca e Tiago Minamisawa não apenas consolidam aqui uma parceria artística das mais relevantes do quadrinho nacional contemporâneo, como também entregam uma das obras mais ousadas, líricas e pertinentes da década.
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