O Agente Secreto leva ao cinema humor, memória e resistência

O Agente Secreto, novo filme do diretor Kleber Mendonça Filho se passa na ditadura brasileira dos anos 1970. Nele, Wagner Moura interpreta Marcelo, um homem em fuga. No início do filme, ele para para abastecer seu Fusca amarelo em um posto de gasolina no meio do nada e se assusta ao ver um cadáver estendido no chão sob o sol escaldante, parcialmente coberto por um pedaço de papelão. Ele descobre que o homem foi baleado pelo frentista do turno da noite enquanto tentava assaltar o local, e a polícia está ocupada demais com o Carnaval para aparecer, embora o mau cheiro atraia cães de rua e moscas.

Dois policiais finalmente chegam ao local, mas não demonstram nenhum interesse pelo cadáver. Em vez disso, um deles faz uma inspeção minuciosa nos documentos e no carro de Marcelo, procurando por drogas, armas ou qualquer tipo de infração. Sem encontrar nada, o policial estende a mão para pedir uma doação para o fundo da polícia. Essa cena nos indica que Marcelo já está no radar das autoridades. Também explica a urgência com que ele chega a Recife para resolver a situação e sair da cidade.

Viúvo, Marcelo tem um filho pequeno, Fernando (Enzo Nunes), que está sob os cuidados dos pais de sua falecida esposa. S
eu sogro, Alexandre (Carlos Francisco), administra um cinema que exibe, entre outros filmes, Jean-Paul Belmondo em O Magnífico, cujo trailer o apresenta como O Agente Secreto – esse personagem e suas cenas remetem muito ao documentário Retratos Fantasmas, que retrata a história do diretor, da cidade e do cinema. É notável como Kleber Mendonça Filho se utilizou das pesquisas realizadas para seu filme anterior ao escrever o roteiro de O Agente Secreto.

Marcelo não é exatamente um dissidente, nem precisamente um agitador político, nem mesmo um esquerdista declarado, mas agora se vê obrigado a sair do Brasil com o filho. No entanto, as coisas não são tão fáceis. Em uma vida anterior, ele era um acadêmico que trabalhava na área de engenharia e descobriu que um ministro com conexões comerciais privadas estava pronto para fechar seu departamento universitário e transferir toda a sua pesquisa, com seu lucrativo potencial industrial, para uma empresa privada da qual possuía ações. A disputa resultante leva o ministro a contratar dois assassinos de aluguel, que trabalham nas horas vagas para a polícia secreta, para eliminar Marcelo. 

Assim, Marcelo é levado para uma casa segura em Recife por um misterioso grupo de resistência, junto com outros “refugiados”, sob os cuidados de Dona Sebastiana (uma atuação maravilhosa de Tânia Maria). Eles lhe oferecem um emprego em um departamento do governo responsável pela emissão de carteiras de identidade, ironicamente, considerando a identidade falsa sob a qual ele agora trabalha. É lá que Marcelo espera encontrar informações sobre sua falecida mãe no arquivo público, e também lá que ele conhece, por obra do destino, um policial terrivelmente corrupto (Robério Diógenes) cujo departamento está usando o caos do carnaval para matar pessoas. Enquanto isso, Marcelo aguarda ansiosamente por seu passaporte falso, junto com o de Fernando, entregues por uma facilitadora da resistência conhecida como Elza (Maria Fernanda Candido).


A população local, já obcecada por tubarões com o lançamento do filme Tubarão, fica eletrizada com a notícia de que um tubarão foi capturado com uma perna humana no estômago – e a imprensa maliciosa espalha rumores de lendas urbanas sobre uma “perna peluda” sobrenatural que salta à noite, aterrorizando as pessoas. A perna aparece ou é mencionada diversas vezes e aparece literalmente chutando homens em um ponto de encontro de homossexuais, funcionando como uma espécie de metáfora de como a ditadura perseguia também esse grupo.

Ao invés de terminar a história de Marcelo seguindo a mesma narrativa do resto do filme, somos levados ao presente. E vemos Flávia, uma pesquisadora que mergulhou na história de Marcelo, viajar até Recife para compartilhar suas descobertas com Fernando (também interpretado por Wagner Moura), agora adulto, que administra um banco de sangue.

É um filme que transforma a violência política em humor ácido e alucinação coletiva. A perna e também o gato de duas caras que vive no apartamento de Marcelo são o tipo de desvio bizarro que você não espera encontrar em um thriller político de época centrado em um pai viúvo cuja vida está em perigo. Mas momentos de humor anárquico em meio a um suspense genuíno são exatamente o que torna o quarto longa-metragem de ficção de Kleber Mendonça Filho uma obra original e emocionante. Apesar dos toques de humor e dos personagens peculiares, O Agente Secreto é um filme profundamente sério sobre um período doloroso do passado brasileiro, quando inúmeras pessoas desapareciam, assassinos de aluguel negociavam cabeças, onde a ditadura era praticamente invisível, apesar de sua presença estar sempre pairando. É ao mesmo tempo semelhante e completamente diferente do vencedor do Oscar do ano passado, Ainda Estou Aqui, de Walter Salles.

A magia do filme reside no fato de que vários elementos incongruentes se encaixam organicamente no contexto geral, sem jamais diluir a tensão ou diminuir a importância da vida ou morte do personagem principal. Ele é interpretado com olhar profundo e um manto de melancolia e mágoa por Wagner Moura, em um retorno estelar ao cinema brasileiro após vários anos de ausência, que justifica as indicações e prêmios já conquistados pelo ator. A performance contida e poderosa, encarna a dor e a dignidade de quem tenta manter a sanidade em meio à paranoia e à opressão. Sua jornada de fuga é também uma busca por identidade, uma metáfora para um país que ainda tenta compreender suas feridas históricas. Além disso, o público pode mergulhar de cabeça na época por conta dos maravilhosos trabalhos de direção de arte e figurino de Thales Junqueira e Rita Azevedo, respectivamente.

O Agente Secreto consolida Kleber Mendonça Filho como um dos cineastas mais inventivos do cinema brasileiro contemporâneo, capaz de unir memória, crítica e imaginação em uma obra ao mesmo tempo inquietante e profundamente humana. Se em filmes anteriores o diretor já se mostrava obcecado por espaços, sons e histórias que reverberam através do tempo, aqui ele leva essa relação entre o passado e o presente a um novo patamar. O diretor reafirma o poder do cinema como instrumento de resistência e memória. É um filme que dialoga com o Brasil de ontem e de hoje, revelando como os mecanismos de vigilância, medo e manipulação continuam a se reinventar. Um artista que insiste em lembrar em um país que insiste em esquecer.

A estreia nacional de O Agente Secreto acontece no dia 6 de novembro, com patrocínio master da Petrobras, que em 2025 comemora 30 anos de apoio ao cinema brasileiro. A distribuição é a Vitrine Filmes.

4

Ótimo

Com direção de arte e figurino impecáveis e uma atuação intensa de Wagner Moura, O Agente Secreto, novo filme de Kleber Mendonça Filho, combina humor ácido e crítica social, misturando realismo com elementos surreais, mas sem perder a gravidade do tema.

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