Como chegar mais próximo da realidade com uma obra ficcional? A diretora libanesa Nadine Labaki nos mostrou com Cafarnaum (indicado ao prêmio de Melhor Filme Estrangeiro no Oscar 2019) a face mais aterradora do cinema verdade e dos limites do sofrimento humano.
O longa retrata a história de Zain, um menino de 12 anos que vive na mais profunda penúria com sua numerosa família. Logo de início, somos apresentados ao personagem em uma sessão de tribunal: o garoto está processando os pais por terem colocado-o no mundo. A partir daí, passamos a testemunhar as sucessivas desgraças que levaram-no a tomar tal decisão.
É importante salientar que Cafarnaum não recorre em nenhum momento ao melodrama e a romantização da pobreza para se aproximar da realidade. Aqui, mensagens de superação das dificuldades ou discursos inspiradores típicos de dramas de tribunal são deixados de lado; a diretora escolhe percorrer outro caminho e explora um processo quase insuportável de sobrevivência e consequente amadurecimento de uma criança que vê e vive o pior que o mundo pode oferecer. Aqui o sofrimento não é a rota para a felicidade, sabedoria ou para algum tipo de reconhecimento social afinal, da dor da vida real, muitas vezes não se pode extrair nada.
O trabalho de fotografia e sonoplastia desse filme é estupendo. Cafarnaum (o próprio nome significa desordem e caos) é sonoramente desagradável, com barulhos estridentes que aumentam o nosso incômodo. Já a fotografia do filme apela para os nossos sentidos, nos permitindo quase sentir o cheiro e a textura da cidade. É uma experiencia similar à assistir ao filme Perfume: História de Um Assassino ou à leitura de O Cortiço, de Aluísio Azevedo.
O ator Zain Al Rafeea carrega o filme inteiro nas costas. Seu trabalho de transformação beira o inacreditável, elevando o seu papel a uma das interpretações infantis mais impressionantes do cinema. O personagem flui por diversas emoções e o peso em seu olhar é o de um homem de 70 anos, estafado mental e fisicamente. Dor, revolta, dormência e raiva se mesclam dentro de uma criança totalmente destruída pelo sofrimento.
Destaque para a atriz Yordanos Shiferaw que traz uma resiliência muito comovente para uma trama tão dura.
Concorrendo com outros filmes igualmente impressionantes no Oscar 2019 de Melhor Filme Estrangeiro (como Roma, Guerra Fria e Assunto de Família), Cafarnaum não levou para a casa o prêmio que merecia, mas foi reconhecido por ser o que se propõe: uma peça genuína do cinema verdade.