O gênero Soulslike é, por natureza, uma experiência polarizadora. Não existe meio-termo: ou o jogador se entrega completamente à curva de aprendizado e à dor transformada em triunfo, ou desiste após as primeiras quedas. Desde que a FromSoftware redefiniu os parâmetros de desafio com Demon’s Souls, e depois consolidou o gênero com Dark Souls, Bloodborne e Elden Ring, diversas desenvolvedoras tentaram replicar essa fórmula, algumas com êxito, outras nem tanto. Em 2024, com o sucesso recente de Black Myth: Wukong, o estúdio chinês Leenzee aposta suas fichas com Wuchang: Fallen Feathers, publicado pela 505 Games. Um título que não se arrisca a reinventar a roda, mas entrega uma jornada competente — ainda que marcada por contrastes gritantes.
Logo de cara, é possível perceber que Wuchang: Fallen Feathers bebe profundamente da fonte da FromSoftware. No entanto, em vez de apenas copiar, o game faz um esforço claro em tornar a fórmula mais acessível. E isso, para muitos jogadores, é um trunfo. A progressão permite liberdade para testar diferentes estilos de combate. Comecei minha jornada com uma abordagem corpo a corpo, empunhando uma espada de duas mãos — e, como era de se esperar, fui punido duramente por inimigos que exigem precisão e paciência. Foi só ao respeitar o sistema de mudança de build, e investir em uma abordagem mágica, que finalmente encontrei fluidez no combate. Essa flexibilidade é uma das maiores qualidades do jogo, permitindo que o jogador experimente, erre e reencontre sua estratégia — algo que muitos soulslike ainda relutam em oferecer.
Narrativamente, o jogo se desenrola nos últimos anos da Dinastia Ming, um período historicamente instável e fascinante. Seguimos a protagonista Wuchang, uma pirata que acorda sem memórias e afetada por uma condição misteriosa chamada Plumagem, que transforma humanos em criaturas deformadas e violentas. Em busca de respostas e de uma possível cura, embarcamos por regiões devastadas pela guerra, como Shu, em uma jornada repleta de encontros sombrios e revelações. A construção de mundo é densa, rica em ambientação e carrega uma carga mitológica cativante — claramente inspirada na cultura e nas lendas chinesas. O grande problema, porém, está nos NPCs: a repetição dos modelos faciais e animações rasas quebram a imersão e evidenciam uma limitação orçamentária ou de escopo.
O sistema de combate é, sem dúvida, o coração pulsante da experiência. Quem já enfrentou as bestas de Bloodborne ou os deuses de Elden Ring sentirá-se em casa aqui. O ritmo é agressivo, mas exige leitura de movimentos, paciência e domínio das esquivas e bloqueios. A mecânica do Poder Celeste, que recompensa o jogador com habilidades especiais, magias e ataques devastadores conforme a performance em batalha, adiciona uma camada estratégica bem-vinda. Cada confronto é um quebra-cabeça de reflexos e observação: errar custa caro, e vencer um chefe após horas de tentativas é uma das sensações mais recompensadoras que um jogo pode oferecer.
Os bosses, aliás, seguem a cartilha: são imponentes, perigosos e exigem que o jogador esteja com os reflexos em dia. Mas existe um equilíbrio interessante entre desafio e recompensa. Focar na evolução mágica pode garantir ataques à distância poderosos e eficientes. Por outro lado, investir em força transforma Wuchang em uma máquina de destruição corpo a corpo, com golpes pesados que dilaceram inimigos. Essa versatilidade permite diferentes estilos de jogo, e a variedade de armas — espadas longas, lâminas duplas, lanças, machados — em conjunto com as magias elementares (gelo, fogo, eletricidade, defesa, força) permite criar combinações poderosas e únicas. A árvore de habilidades não é apenas uma formalidade, mas um verdadeiro laboratório de possibilidades.
Visualmente, Wuchang: Fallen Feathers é deslumbrante. Os cenários carregam uma beleza melancólica, com templos em ruínas, vilarejos cobertos por névoa e florestas densas e místicas. O design artístico é de cair o queixo e demonstra o cuidado estético do estúdio chinês. No entanto, esse esmero visual contrasta com a limitação estrutural: o game aposta em uma progressão extremamente linear. O jogador é constantemente guiado por caminhos estreitos, com pouca margem para exploração ou segredos. Em um momento onde o gênero flerta cada vez mais com o mundo aberto, essa decisão pode soar como um retrocesso.
Outro ponto que compromete a experiência é a movimentação da protagonista. Wuchang é lenta, principalmente fora de combate, e isso prejudica o ritmo. Em confrontos com inimigos rápidos, sua recuperação após quedas é demorada, o que causa momentos de frustração extrema — principalmente quando a IA inimiga não perdoa e continua golpeando implacavelmente. Magias demoram a ser conjuradas, beber o líquido de restauração (o “maná” vital da heroína) leva preciosos segundos, e em um jogo onde cada frame importa, esses detalhes pesam. É quase cômico como o combate pode ser fluido, mas a movimentação da personagem seja travada — um contraste que não deveria existir.
Felizmente, o estúdio Leenzee já mostrou comprometimento com o feedback da comunidade. Um dos primeiros patches pós-lançamento corrigiu boa parte desses problemas, otimizando o tempo de resposta da personagem e tornando a experiência mais equilibrada. Essa agilidade no suporte pós-lançamento é positiva, mas também levanta uma questão recorrente na indústria: ainda vale a pena comprar jogos no lançamento, sabendo que a versão definitiva quase sempre chega semanas (ou meses) depois?
Minha jornada com Wuchang: Fallen Feathers aconteceu através do Game Pass, o que eliminou o peso financeiro da aposta. Ainda assim, enfrentei momentos difíceis com problemas de performance. Em lutas caóticas com múltiplos efeitos visuais, o jogo travou — e sim, perdi batalhas com bosses por conta disso. É frustrante, mas compreensível quando olhamos para o escopo do projeto e a juventude do estúdio.
No fim das contas, Wuchang: Fallen Feathers é uma experiência que, mesmo com tropeços, merece ser vivida. É desafiadora, atmosférica, bem construída e repleta de potencial. A trilha sonora cumpre seu papel de forma elegante, e a mitologia chinesa, ainda tão pouco explorada nos games, é aqui utilizada com respeito e profundidade. Se Leenzee seguir evoluindo nesse ritmo, é só questão de tempo até se tornar um dos grandes nomes do gênero.
O game está disponível no PlayStation 5, Xbox Series X e Series S, Xbox Cloud Gaming e PC.
BOM
Wuchang: Fallen Feathers é uma experiência que, mesmo com tropeços, merece ser vivida. É desafiadora, atmosférica, bem construída e repleta de potencial.