A palavra lar carrega um peso simbólico que vai muito além da arquitetura que o abriga. É um conceito que se desdobra entre o acolhimento e a prisão, entre o conforto e a dor, entre o lugar que habitamos e aquele que nos habita. Em seu novo documentário, Lar, Leandro Wenceslau — também responsável por Bolha e Enquanto Ainda é Tempo — mergulha nesse território afetivo com uma sensibilidade rara, explorando as múltiplas camadas de significado que envolvem o ato de amar, cuidar e pertencer. O filme não se propõe apenas a mostrar o cotidiano de famílias diversas; ele busca, sobretudo, compreender o que nos mantém unidos quando tudo ao redor tenta nos fragmentar.

A partir do olhar dos filhos e filhas de três famílias LGBTIAPN+, Wenceslau constrói um mosaico delicado e sincero de experiências que desafiam o modelo tradicional de estrutura familiar. Em vez de um retrato idealizado, o diretor opta por mostrar as fissuras, os momentos de dúvida e as cicatrizes abertas pelo preconceito — e é justamente aí que o filme se torna mais potente. A naturalidade com que essas famílias compartilham suas histórias confere ao documentário uma autenticidade emocional que ultrapassa o discurso político e alcança o humano. São histórias de amor e resistência, narradas com a simplicidade do cotidiano, mas com a força simbólica de quem luta diariamente por reconhecimento e legitimidade.
Em paralelo a essas narrativas, Leandro Wenceslau entrelaça sua própria jornada pessoal, revisitando lembranças de infância e as dores silenciosas de quem cresceu à margem do que se considerava “normal”. Esse gesto de exposição transforma o filme em algo mais íntimo — quase uma carta aberta sobre a busca por pertencimento. Há algo profundamente terapêutico no modo como o diretor se coloca diante da câmera, não como narrador onisciente, mas como parte integrante de um universo que ele também tenta compreender. Essa fusão entre o coletivo e o pessoal confere ao documentário uma estrutura fluida, emocionalmente densa e poeticamente sincera.
Lar é, acima de tudo, um filme sobre a redefinição de fronteiras — entre o público e o privado, entre o individual e o comunitário. O conceito de família, aqui, não é rígido; é vivo, pulsante e em constante transformação. A câmera de Wenceslau observa com ternura, sem interferir, permitindo que os gestos e olhares falem mais do que as palavras. Em cada cena, há uma tentativa de compreender o que sustenta um lar quando o amor precisa enfrentar o preconceito, as leis e o tempo. O documentário convida o espectador a refletir sobre suas próprias noções de casa e pertencimento, transformando o íntimo em universal.
Ainda que o filme alcance momentos de profunda emoção, sua estrutura se alonga um pouco além do necessário. Do meio para o final, Lar perde parte de sua força inicial, repetindo algumas ideias que já haviam sido exploradas com sutileza. Talvez um formato de curta-metragem potencializasse sua essência, condensando a intensidade emocional sem comprometer o impacto. No entanto, esse pequeno deslize estrutural não diminui a relevância da obra, que se mantém firme em sua proposta de provocar reflexão e empatia.
Em um cenário cinematográfico ainda carente de representações autênticas das famílias LGBTIAPN+, Lar surge como um documentário necessário. Sua força reside na sensibilidade do olhar e na honestidade com que trata temas tão íntimos. É um filme que não oferece respostas, mas sim perguntas — e talvez seja justamente isso que o torna tão essencial. Porque, no fim das contas, o verdadeiro lar é aquele que acolhe nossas dúvidas, cicatrizes e afetos. E o cinema de Leandro Wenceslau, com sua delicadeza e profundidade, nos lembra que é possível transformar até a dor em poesia.
Distribuído pela Embaúba Filmes, Lar tem estreia marcada para o dia 13 de novembro nos cinemas.
BOM
Lar é, acima de tudo, um filme sobre a redefinição de fronteiras — entre o público e o privado, entre o individual e o comunitário. O conceito de família, aqui, não é rígido; é vivo, pulsante e em constante transformação.