O cinema, em sua essência, sempre foi o espaço privilegiado para contar histórias de deslocamentos, encontros improváveis e identidades em trânsito. Em Dormir de Olhos Abertos, a cineasta alemã Nele Wohlatz constrói um retrato delicado e silencioso sobre a experiência dos imigrantes no Brasil, costurando a narrativa com o humor sutil dos mal-entendidos e a melancolia de quem busca um lugar no mundo. Vencedor do Prêmio da Crítica Internacional (FIPRESCI) no Festival de Berlim 2024, o longa chega aos cinemas brasileiros no dia 11 de setembro, pela Sessão Vitrine Petrobras, cercado de expectativa após uma temporada de elogios da imprensa internacional.
A autenticidade da mise-en-scène e o peso da inexperiência
Para trazer uma atmosfera genuína, Wohlatz opta por uma mistura ousada: atores iniciantes contracenando com profissionais. Entre eles, destaca-se o argentino Nahuel Pérez Biscayart, lembrado por sua performance em 120 Batimentos por Minuto. Essa escolha dá ao filme um frescor documental, um ar quase improvisado que aproxima o espectador da realidade dos personagens. No entanto, a opção não está livre de riscos: a falta de experiência de parte do elenco, por vezes, evidencia fragilidades na condução dramática, quebrando a naturalidade que a diretora parece perseguir. É um jogo de perdas e ganhos — mas, justamente nesse contraste, o longa encontra sua identidade.
O acaso, os encontros e a busca por pertencimento
A narrativa tem início em uma cidade litorânea do Brasil, onde Kai (Liao Kai Ro) chega de Taiwan para passar as férias em meio a um coração partido. O roteiro aciona o acaso como motor dramático: um ar-condicionado quebrado a leva até a loja de guarda-chuvas de Fu Ang (Wang Shin-Hong). O encontro entre os dois abre espaço para uma amizade improvável que, no entanto, nunca se concretiza, já que a loja desaparece junto com seu dono. A partir daí, o filme mergulha em uma jornada quase labiríntica de busca — não apenas por Fu Ang, mas por uma conexão que dê sentido à estadia de Kai naquele território estrangeiro. Ao conhecer um grupo de trabalhadores chineses em um arranha-céu de luxo, Kai encontra ecos de sua própria solidão na figura de Xiaoxin (Chen Xiao Xin), e é nesse reflexo que a trama se aprofunda em sua dimensão mais poética.
Imigração, precariedade e o peso da memória coletiva
Ao trabalhar com duas linhas do tempo, Wohlatz dá camadas adicionais à experiência de seus personagens. O filme não se limita à busca individual de Kai, mas amplia seu olhar para uma coletividade de imigrantes marcados por histórias de visto ilegal, precarização do trabalho e fuga da modernidade chinesa para um Brasil que, paradoxalmente, insiste em viver do passado. Essa contraposição entre o sonho de recomeço e as armadilhas da realidade social brasileira transforma Dormir de Olhos Abertos em um drama social de sutileza rara. A diretora evita panfletos ou discursos fáceis: seu cinema opera nas entrelinhas, convidando o espectador a “ler” os silêncios e compreender as dores que não são verbalizadas.
O título como síntese da experiência migratória
Não há escolha de título mais simbólica: Dormir de Olhos Abertos traduz o estado de alerta constante de quem vive em terra estrangeira. Estar desperto é, aqui, uma condição de sobrevivência. Os personagens precisam lidar com burocracias, preconceitos e incertezas, mas também encontram brechas de afeto e solidariedade. Wohlatz mostra que, apesar das cicatrizes, a busca por um lugar ao sol é o que sustenta cada um deles. O filme, assim, ressoa como uma reflexão universal sobre deslocamento, identidade e esperança, construindo uma ponte entre a experiência particular de seus protagonistas e a sensação coletiva de estranhamento que todos já experimentamos em algum momento da vida.
Dormir de Olhos Abertos é um filme que exige sensibilidade do espectador. Nele Wohlatz não oferece respostas prontas, tampouco um arco narrativo tradicional: sua proposta é deixar que os silêncios, os gestos e os pequenos desencontros falem por si. É um cinema contemplativo, que se inscreve na tradição dos grandes retratos de imigrantes, mas com uma assinatura própria e singular. Produzido por Kleber Mendonça Filho (O Agente Secreto), o longa reafirma a potência do cinema como ferramenta de empatia e nos lembra de que, mesmo em meio ao exílio e à saudade, ainda é possível encontrar vínculos e pertencimento. Um filme que, com delicadeza, se torna inesquecível.
Dormir de Olhos Abertos chega aos cinemas brasileiros no dia 11 de setembro pela Sessão Vitrine Petrobras.
BOM
Dormir de Olhos Abertos é um filme que exige sensibilidade do espectador. Nele Wohlatz não oferece respostas prontas, tampouco um arco narrativo tradicional: sua proposta é deixar que os silêncios, os gestos e os pequenos desencontros falem por si.