A Natureza das Coisas Invisíveis: a potência da amizade e a finitude
Divulgação/Sinny Comunicação
A Natureza das Coisas Invisíveis: a potência da amizade e a finitude
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A Natureza das Coisas Invisíveis: a potência da amizade e a finitude

A Natureza das Coisas Invisíveis é um daqueles filmes que não se impõem com estrondo, mas que permanecem reverberando silenciosamente na memória, como um eco suave que insiste em voltar no pensamento dias depois da sessão. O longa escrito e dirigido por Rafaela Camelo entra nas entranhas da experiência infantil não como um observador distante, mas como alguém que decide se abaixar até a altura das meninas e olhar o mundo com elas, não sobre elas. Há uma rara honestidade em sua abordagem do universo infantil, um desprendimento dos códigos tradicionais de dramatização para cinema, e um anseio de captar o invisível — as emoções sutis, os gestos indizíveis, as formas como duas crianças percebem a finitude antes mesmo de compreender a complexidade da palavra “morte”. É daí que nasce a força narrativa e emocional do filme: não apenas no que se mostra, mas principalmente naquilo que se recusa a explicar por completo, permitindo que o espectador caminhe junto.

A Natureza das Coisas Invisíveis: a potência da amizade e a finitude

No coração dessa narrativa encontra-se Glória, interpretada com uma sensibilidade comovente por Laura Brandão, uma menina de 10 anos que passa as férias em um hospital onde a mãe trabalha como enfermeira. A contradição entre a ideia de “férias” e o cenário hospitalar estabelece uma tensão poética: a infância, que deveria ser expandida e leve, é comprimida pelas paredes brancas de um lugar que lida com o limite da vida. Ali, Glória conhece Sofia, vivida por Serena, uma menina cuja convicção é tão ingênua quanto poderosa: ela acredita que a piora da saúde da bisavó está ligada à sua internação. Há algo de profundamente infantil — e por isso mesmo genuíno — nessa culpa deslocada: quando o mundo não faz sentido, as crianças criam narrativas para dar forma àquilo que as angustia. A amizade surge então como um abrigo, uma forma de resistência ao inevitável, quase como uma invenção secreta do futuro.

A cineasta Rafaela Camelo constrói sua mise-en-scène a partir de uma sensibilidade radicalmente íntima. Nada é exibicionista, nada é resolução cinematográfica imposta; o filme prefere o gesto sutil à explicação didática. Ao redor de Glória e Sofia, existe uma constelação de mulheres — mães, avós, cuidadoras — que compõem um universo silencioso, sólido e profundamente afetuoso. Não é à toa que a delicadeza do olhar infantil encontra eco no cuidado feminino que permeia toda a narrativa. A diretora evita qualquer tentativa de infantilizar as personagens: as crianças não são dopplegangers reduzidas de adultos; são criaturas com sua própria lógica, sua própria gramática emocional, suas próprias formas de negociar aquilo que não compreendem totalmente. Ao rejeitar o discurso paternalista, o filme nos lembra que a infância é um território de complexidades invisíveis e de uma lucidez que, por vezes, os adultos perdem ao se protegerem das dores do mundo.

Quando a partida se torna inevitável, Glória, Sofia e suas mães seguem juntas para um refúgio no interior de Goiás, e é nesse ponto que o filme se expande para além do ambiente hospitalar. O interior rural, com suas linhas suaves, suas luzes quentes e seu silêncio respirável, funciona como um espaço ritualístico para o adeus. Cada gesto — um toque, uma risada, um banho de rio — ganha uma intensidade trágica e ao mesmo tempo libertadora. O filme não questiona a morte como conceito filosófico abstrato; ele a encara como uma presença que atravessa o cotidiano e obriga todos a se rearranjarem emocionalmente. Há algo quase litúrgico nessa fase final: como se a natureza, com sua vastidão, servisse de interlocutora para uma despedida que os humanos não sabem bem como conduzir. Tudo se torna uma coreografia de gestos pequenos, mas de impacto devastador.

Ao abordar o amadurecimento precoce diante do luto, A Natureza das Coisas Invisíveis oferece um olhar corajoso e profundamente humano sobre como as crianças se situam nos processos da morte. Não há fantasia redentora, tampouco uma crueldade que sofra de exibicionismo dramático. O filme entende que a infância não é incapaz de reconhecer a dissolução da vida — pelo contrário: ela a percebe com uma pureza que muitas vezes os adultos se recusam a admitir. O luto infantil não é menor, é apenas diferente, e o longa tem a delicadeza de respeitar esse lugar, de honrar a maneira como meninas de 10 anos reinventam o mundo quando alguém que amam começa a desaparecer.

A Natureza das Coisas Invisíveis é uma obra de magnitude sensorial silenciosa. É simples na superfície, mas descomunal em profundidade emocional. Ao colocar a infância frente ao invisível sem subestimá-la, Rafaela Camelo revela uma verdade incontornável: antes de terem palavras para nomear o que sentem, as crianças já compreendem a despedida. E é na amizade que elas encontram uma forma instintiva de seguir adiante, reconfigurando o mundo à sua maneira. Poucos filmes contemporâneos alcançam tamanha honestidade diante do mistério da vida e da morte, e é justamente por isso que este longa permanece nos acompanhando muito além da última cena.

Com distribuição da Vitrine Fimes, o filme chega aos cinemas brasileiros em 27 de novembro, dentro da Sessão Vitrine Petrobras.

4

ÓTIMO

A Natureza das Coisas Invisíveis é uma obra de magnitude sensorial silenciosa. É simples na superfície, mas descomunal em profundidade emocional.

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