A minissérie documental da Netflix De Rock Star a Assassino: O Caso Cantat se apresenta como um retrato inquietante de um crime que abalou a França e expõe, com um rigor cirúrgico, a complacência da sociedade e do sistema judiciário diante da violência contra a mulher. Com três episódios de aproximadamente 40 minutos, a produção reconstrói com minúcia os eventos que culminaram na morte da renomada atriz francesa Marie Trintignant, vítima das agressões brutais do então namorado, Bertrand Cantat, líder da influente banda de rock Noir Désir. O documentário não apenas reconta os fatos, mas os insere num contexto mais amplo, que perpassa o machismo estrutural, o silenciamento de vítimas e o tratamento leniente dado a homens poderosos acusados de crimes graves.
A narrativa está longe de ser uma simples reconstituição dos eventos. O documentário investiga, com uma abordagem quase forense, como Cantat já apresentava comportamentos abusivos muito antes do assassinato de Trintignant, mas nada foi feito. Em um período anterior à ascensão do movimento #MeToo, a violência doméstica era frequentemente relegada ao âmbito do “problema pessoal”, ignorada pela imprensa e até mesmo pelas próprias instituições que deveriam combatê-la. O músico, que foi um dos grandes ícones do rock francês, possuía uma história de comportamento possessivo e agressivo que era conhecido nos bastidores, mas nunca denunciado publicamente.
A produção se destaca ao dar voz aos familiares e amigos de Trintignant, que compartilham relatos comoventes sobre o impacto devastador do relacionamento abusivo na vida da atriz. A mãe de Marie, Nadine Trintignant, figura central do documentário, emerge como uma mulher forte e resiliente, que jamais cessou sua luta por justiça. A presença do ex-marido também é essencial para a construção do retrato desse crime brutal, que chocou um país inteiro, mas que, de certa forma, foi engolido pela indiferença pública ao longo dos anos.
O documentário é cirúrgico ao detalhar o crime. Em 26 de julho de 2003, durante uma estadia em um hotel na Lituânia, Cantat agrediu violentamente Trintignant após uma discussão motivada, segundo ele, por uma mensagem recebida pela atriz de seu ex-marido. A brutalidade foi tamanha que a atriz entrou em coma e, dias depois, faleceu em decorrência dos traumas cerebrais sofridos. O julgamento de Cantat, ocorrido em 2004, revelou a extensão de sua violência: foram pelo menos 19 golpes na cabeça e no rosto. No entanto, sua condenação a apenas oito anos de prisão gerou revolta, e a realidade se tornou ainda mais indigesta quando ele cumpriu apenas quatro anos antes de ser libertado por “bom comportamento”.
Mas a história de Cantat não termina com a morte de Trintignant. Em 2010, Krisztina Rády, ex-esposa do cantor, cometeu suicídio, deixando para trás gravações de áudio que expunham o ciclo de violência doméstica que também vivia ao lado do roqueiro. O documentário expõe esse aspecto de forma contundente, evidenciando como a sociedade fechou os olhos para o comportamento violento e misógino de Cantat. O músico continuou sua carreira, seus shows lotaram e, mesmo após as novas revelações, ele manteve um público fiel. Foi apenas com o crescimento do movimento #MeToo que uma petição assinada por mais de 75 mil pessoas conseguiu impedir sua presença em festivais, marcando um ponto de virada na percepção do caso pela opinião pública.
O grande trunfo de De Rock Star a Assassino: O Caso Cantat é seu olhar sem concessões sobre a forma como a sociedade trata vítimas de violência doméstica. A produção é um lembrete doloroso de que, até hoje, muitas mulheres são silenciadas e culpabilizadas, enquanto seus agressores seguem suas vidas com mínimas consequências. O documentário não busca apenas informar, mas provocar reflexão e, quem sabe, contribuir para que casos semelhantes não sejam mais normalizados.
Ao fim dos três episódios, o espectador é deixado com uma mistura de revolta e tristeza. Revolta por saber que a justiça falhou repetidamente com Marie Trintignant e com tantas outras mulheres. Tristeza por perceber que, apesar dos avanços, ainda estamos distantes de um cenário em que agressores de mulheres sejam realmente responsabilizados e impedidos de seguir em frente sem consequências reais. De Rock Star a Assassino: O Caso Cantat é, acima de tudo, um documentário necessário, que resgata a memória de Marie Trintignant e reforça a importância de nunca esquecermos o seu nome.
EXCELENTE
De Rock Star a Assassino: O Caso Cantat é, acima de tudo, um documentário necessário, que resgata a memória de Marie Trintignant e reforça a importância de nunca esquecermos o seu nome.