Ângela Diniz: Assassinada e Condenada
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Ângela Diniz: Assassinada e Condenada
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Ângela Diniz: Assassinada e Condenada | O “crime” de ser uma mulher linda, livre e louca

Inspirada no podcast Praia dos Ossos, a minissérie Ângela Diniz: Assassinada e Condenada, dirigida por Andrucha Waddington, se passa nos últimos anos de vida da socialite titular e revisita um dos casos mais emblemáticos da história criminal e política do Brasil: o assassinato da socialite mineira Ângela Diniz, morta a tiros por seu então companheiro, Doca Street, em sua casa em Búzios, no Rio de Janeiro, em 1976. Ao longo de seus seis episódios, a produção não apenas reconstitui os fatos, mas os transforma em metáfora viva da violência estrutural que ainda hoje define o destino de tantas mulheres brasileiras.

O crime, que abalou o Brasil na época, não foi apenas em um escândalo midiático, mas se transformou em um divisor de águas no debate sobre violência contra a mulher. O julgamento de Doca Street ficou célebre tanto pela estratégia polêmica da defesa da honra quanto pela repercussão nacional, que mobilizou a opinião pública, expôs a misoginia enraizada na sociedade brasileira e catalisou movimentos feministas que exigiram justiça e mudanças estruturais na forma como o país tratava crimes desse tipo.

A narrativa começa em Belo Horizonte, onde Ângela, aprisionada pelas aparências, decide pôr fim ao casamento com Milton Villas Boas (Thelmo Fernandes). Por tentar ser tão livre, Ângela quase perde uma das coisas mais importantes em sua vida: sua filha. Nessa parte, a série destoa um pouco da realidade, pois na vida real, Ângela teve três filhos e não apenas uma menina (certamente uma tentativa de manter a privacidade dos filhos).

Antes de explorar o crime em questão, a minissérie trabalha a construção e destruição da figura pública de sua protagonista, algo que começa com esse divórcio nada amigável. Em uma das frases mais marcantes, Ângela diz que sua condenação começou no dia em que decidiu se separar do marido com quem se casou aos 17 anos.

É enfatizado o quanto ela era linda, livre e sua figura, bastante glamourizada. Porém isso vinha com uma carga de preconceito e julgamento moral que recaía sobre mulheres independentes, sobretudo na década de 1970. Essa liberdade, muitas vezes era vista como loucura, uma tentativa de deslegitimar seus desejos, escolhas e medos. A produção, ao escolher esses temas, já antecipa que sua protagonista foi, antes de tudo, vítima de um sistema que a empurrava para papéis estreitos e punia qualquer tentativa de autonomia, ainda que fosse uma mulher com dinheiro, fama e beleza. A recusa em caber nos moldes por beber, dançar, amar, desejar e ter prazer, foi seu “crime” simbólico antes do feminicídio.

A cobertura midiática da época, retratada na série de forma crítica e contundente, revela um jornalismo profundamente machista: manchetes sensacionalistas, comentários moralistas e reportagens que repetiam incessantemente a ideia de que Ângela era uma mulher difícil, descontrolada e provocadora. A narrativa social que se formou em torno dela reforçava a noção de culpa feminina.

Marjorie Estiano interpreta Ângela de forma bastante sedutora. A atuação da atriz vem com a densidade emocional e vulnerabilidade necessária ao retratar uma mulher que foi transformada pela imprensa em um espetáculo.

Do outro lado da história está Doca Street, interpretado com frieza e convicção por Emílio Dantas. A série não suaviza suas contradições e evidencia sua manipulação emocional, sua possessividade e suas tentativas constantes de controlar o comportamento e a vida de Ângela. Doca não foi apenas o autor dos disparos que tiraram sua vida, mas alguém que, ao longo da relação, utilizou-se de uma série de artifícios emocionais e sociais para manter o controle sobre ela sob o disfarce do amor.

A presença do renomado advogado Evandro Lins e Silva, interpretado por Antônio Fagundes, adiciona outra camada complexa à narrativa, afinal, ele foi o responsável por estruturar a controversa tese de defesa da honra, argumento jurídico que praticamente absolvia homens que matavam suas esposas ou companheiras sob alegação de proteção de reputação masculina.

O roteiro de Elena Soárez, Pedro Perazzo e Thais Tavares amplia esses aspectos ao reconstruir, episódio a episódio, o universo desigual que cercava Ângela. Os homens de sua vida, muitos deles casados, influentes ou simplesmente fascinados por seu estilo, a viam como um símbolo de poder ou um objeto de desejo, mas quase nunca como sujeito de sua própria história. O contraste entre a liberdade que Ângela buscava e o controle que os outros tentavam exercer sobre ela é um dos pontos mais fortes da narrativa.

Ainda assim, a minissérie também ilumina espaços de afeto e resistência. Um dos elementos mais sensíveis do roteiro é a rede de apoio feminino construída ao redor de Ângela através das amigas, conhecidas, parceiras de vida que a acolheram, sobretudo no Rio de Janeiro, e com quem ela pôde vivenciar momentos de autenticidade e liberdade. Embora isso não tenha sido suficiente para salvá-la da violência extrema, foi fundamental para humanizar sua memória e para fortalecer o movimento que exigiu justiça em seu nome.

Ângela Diniz: Assassinada e Condenada demonstra com clareza perturbadora que muitos dos mecanismos que permitiram sua morte e que quase absolveram seu assassino, continuam operantes ainda hoje, quase cinquenta anos após o caso. A série é um retrato contundente do machismo brasileiro, uma análise profunda do feminicídio antes mesmo de o termo existir legalmente.  Essa reflexão, tão dolorosa quanto verdadeira, sintetiza a estrutura opressiva que permeia toda a produção: Ângela foi punida porque ousou viver como queria. E sua história, ao ser retomada agora, reafirma a urgência de continuar lutando para que nenhuma mulher seja silenciada pela mesma lógica.

Os dois primeiros episódios de Ângela Diniz: Assassinada e Condenada já estão disponíveis na HBO Max e serão seguidos por episódios semanais, às quintas-feiras.

4

Ótima

Ao revisitar o assassinato de Ângela Diniz e o escandaloso julgamento de Doca Street, Ângela Diniz: Assassinada e Condenada expõe como a mídia, o sistema de justiça e a moral conservadora construíram uma narrativa que transformou a vítima em ré e o agressor em homem “honrado”.

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