Poucas obras em quadrinhos carregam um peso histórico, político e narrativo tão profundo quanto O Eternauta – Segunda Parte, de Héctor Germán Oesterheld e Francisco Solano López. Lançada na Argentina entre 1976 e 1978, nas páginas da revista Skorpio, a continuação da saga de Juan Salvo demorou mais de quinze anos para ser concluída após o marco absoluto que foi o primeiro volume. Hoje, com a nova edição em capa dura lançada pela editora Pipoca & Nanquim — acompanhada de uma luva especial que acomoda os dois volumes lado a lado —, o leitor brasileiro tem acesso a uma das mais impactantes histórias de ficção científica já produzidas na América Latina.
A narrativa começa exatamente onde o primeiro O Eternauta termina, mas agora o jogo literário se torna ainda mais ousado. O próprio Héctor Germán Oesterheld, roteirista da obra, entra como personagem da trama. O autor, ao mesmo tempo criador e testemunha, se encontra aterrorizado diante do relato de Juan Salvo, o viajante da eternidade que carrega consigo o fardo de uma tragédia iminente. Essa escolha narrativa cria uma metalinguagem única, transformando a história em uma experiência quase documental — como se estivéssemos lendo o diário de um sobrevivente em meio ao apocalipse. O grupo de personagens, incluindo Salvo, é lançado em uma dobra espaço-temporal que os transporta a um futuro arrasado, dominado pela decadência social e por uma figura tirânica vinda de outro mundo.
O Eternauta – Segunda Parte mergulha em uma atmosfera que mistura aventura e distopia de forma visceral. Os protagonistas encontram uma humanidade reduzida ao estado primitivo, com resquícios de civilização lutando pela sobrevivência em um planeta devastado. Essa sociedade fragmentada se alia ao grupo de Juan Salvo contra os temidos “Mãos”, uma raça de dominadores implacáveis que representam tanto a opressão externa quanto as ditaduras internas que corroem os povos. É impossível não associar a obra ao espírito de filmes como Planeta dos Macacos e O Elo Perdido, mas Oesterheld e Solano López imprimem aqui uma força original, colocando o leitor diante de um espelho desconfortável sobre os rumos da humanidade e da política.
O detalhe mais fascinante desta continuação é a presença ativa de Héctor Germán Oesterheld dentro da história. Ele não é apenas o narrador ou um observador, mas um verdadeiro companheiro de Juan Salvo, atuando como braço direito na jornada. Essa inserção ressignifica toda a obra: o autor passa a se fundir com sua criação, transformando a narrativa em um manifesto literário contra a tirania. E o desfecho fora das páginas é ainda mais trágico e simbólico. Poucos meses antes da publicação do último capítulo, Oesterheld desapareceu para sempre, vítima da repressão da ditadura militar argentina. Sua ausência é sentida não apenas como um golpe histórico, mas como a confirmação de que O Eternauta – Segunda Parte é, de fato, um testamento de resistência coletiva, esperança e coragem diante da barbárie.
Se o primeiro Eternauta já havia se consolidado como a obra-prima da ficção científica em quadrinhos na América Latina, sua continuação eleva ainda mais esse patamar. É surpreendente que uma obra tão grandiosa tenha ficado escondida do público brasileiro por tantos anos. Hoje, com a publicação luxuosa da Pipoca & Nanquim, o leitor tem a oportunidade de conhecer não apenas uma história de ficção científica, mas também um grito de denúncia contra regimes autoritários, embalado por uma trama eletrizante de viagem temporal, sociedades primitivas e a eterna luta pela liberdade.
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