É curioso e, ao mesmo tempo, um tanto melancólico perceber que O Eternauta, a icônica HQ argentina de Héctor Germán Oesterheld e Francisco Solano López, nunca tenha recebido a devida consagração no Brasil, apesar de seu impacto incomensurável na ficção científica sul-americana. Em meio a tantas obras importadas que inundam nosso mercado editorial, esta verdadeira joia da nona arte chegou a ter edições por aqui, mas nunca à altura de seu legado. Agora, com um trabalho de resgate ímpar, a editora Pipoca & Nanquim apresenta uma edição definitiva, reunindo as histórias publicadas originalmente entre 1957 e 1959 na revista Hora Cero Semanal. Esta publicação faz jus à grandiosidade de uma das mais marcantes críticas sociais travestidas de ficção científica.
A obra transcendeu a linguagem dos quadrinhos, influenciando gerações com sua poderosa mensagem de resistência e suas afiadas críticas ao imperialismo e ao militarismo. Seu impacto cultural e social é inegável: até hoje, murais em Buenos Aires exibem a figura icônica de Juan Salvo em seu traje protetor, um símbolo de luta coletiva e solidariedade. Mais do que um quadrinho, O Eternauta é um manifesto que ressoa nas veias da Argentina, um lembrete constante da força do coletivo diante das adversidades.
O enredo começa de forma intrigante: na Buenos Aires do final dos anos 1950, um escritor de quadrinhos recebe a visita de um homem que afirma ter vindo do futuro. Este homem, Juan Salvo, relata os eventos de uma noite apocalíptica em que uma nevasca fluorescente e mortal transformou uma rotina de amigos jogando truco em uma luta desesperada pela sobrevivência. A neve, tóxica e implacável, é apenas o prenúncio de uma invasão alienígena devastadora. Na busca por sobrevivência, o grupo é forçado a sair de seu abrigo e enfrentar não apenas os horrores extraterrestres, mas também as complexidades das relações humanas e a importância da união em tempos de crise.
Com 372 páginas recheadas de mistérios, reflexões e diálogos afiados, O Eternauta é também um produto de seu tempo. As críticas de Oesterheld ao autoritarismo e à violência estatal ganham um tom profético quando se considera que ele mesmo foi uma vítima da ditadura argentina. Capturado em 1977, o autor desapareceu sem deixar rastros, tornando sua obra ainda mais potente e carregada de significado. Essa conexão visceral entre arte e vida transforma a leitura em uma experiência ainda mais impactante.
Embora Juan Salvo seja o protagonista, é o coletivo que se destaca como o verdadeiro herói da narrativa. Para Oesterheld, a união é a única força capaz de enfrentar as maiores ameaças. No início da trama, cada personagem busca proteger apenas a si mesmo, mas à medida que a história avança, eles percebem que apenas unindo forças podem lutar contra o mal maior. A invasão alienígena, além de ser uma metáfora para as agressões imperialistas, sublinha a ideia de que a resistência individual é insuficiente diante de desafios globais.
O Eternauta é uma obra indispensável para qualquer amante de ficção científica e de narrativas carregadas de significado histórico e emocional. É uma daquelas histórias que transcendem o tempo, continuando a inspirar e provocar reflexão mesmo mais de 60 anos após sua criação. Com uma adaptação televisiva da Netflix prevista para 2025, estrelada pelo renomado Ricardo Darín, esta é a chance perfeita para mergulhar nesta obra-prima e entender por que ela continua tão relevante e fascinante. O Eternauta não é apenas uma HQ, é um testemunho do poder da arte como ferramenta de resistência e transformação.