Poucos autores no mundo dos quadrinhos possuem uma assinatura tão única, tão desafiadora e tão profundamente instigante quanto Alejandro Jodorowsky. O criador do Incal e da saga A Casta dos Metabarões é conhecido por sua alquimia de filosofia, ocultismo, surrealismo e ficção científica que se fundem em histórias cósmicas que transcendem o convencional. Dentro desse vasto e alucinado Jodoverso, Megalex talvez seja sua obra mais brutalmente distópica. Originalmente publicado em três volumes entre 1999 e 2008, com arte digital futurista do francês Fred Beltran, Megalex emerge como uma fábula tecnoxamânica que choca, fascina e desnorteia com a mesma intensidade. A nova edição lançada pela Pipoca & Nanquim, com o cuidado editorial e acabamento gráfico já característicos da casa, traz novamente à tona essa experiência sensorial que é ler Jodorowsky em sua fase mais cyber-barroca.
O planeta Megalex não é apenas o nome da obra, mas o cenário vivo — e moribundo — onde a ação se desenrola. Trata-se de um mundo totalmente artificial, onde as leis da natureza foram sistematicamente eliminadas, onde até mesmo as árvores são proibidas e os rios, canalizados. A sociedade é governada por uma linhagem de tiranos imortais que transformaram seus cidadãos em zumbis entorpecidos por drogas legais, encapsulados em uma rotina opressora e controlada até o último fio de cabelo. Nesse palco de decadência e desespero, nasce um improvável herói: um clone de soldado considerado defeituoso por sua capacidade de questionar e sentir. É esse lampejo de humanidade o ponto de ignição para uma jornada transformadora, que o levará ao encontro de Adama, uma figura feminina de força magnética, guerreira e profeta, símbolo da resistência viva que ainda pulsa nos subterrâneos do planeta.
A rebelião, no entanto, não se limita a tiros e explosões. Em Jodorowsky, a revolução é sempre espiritual, simbólica, carregada de arquétipos e signos. Quando o clone encontra os Objetores da Floresta de Chem — uma sociedade mística e orgânica, liderada pelo corcunda Zerain — o quadrinho dá um salto para o campo do mito. As feiticeiras que preveem a chegada de um novo Messias, a evocação de uma Guerra Santa e a dualidade entre razão e instinto não são meros recursos narrativos, mas sim convites a uma leitura metafísica da distopia. O protagonista não é apenas um rebelde: ele é o símbolo de um renascimento, um Cristo cibernético em meio a uma Jerusalém distorcida por chips, plástico e opressão tecnológica. Beltran, com seu estilo que mistura o digital ultraestilizado com a organicidade dos corpos nus, musculosos, e das paisagens bizarras, acentua ainda mais essa fusão entre o grotesco e o sagrado.
Visualmente, Megalex é um deleite para os olhos — mas um deleite perturbador. As páginas são repletas de criaturas mutantes, designs urbanos decrépitos, veículos gigantescos, fetichismos visuais e sensualidade exacerbada, tudo com o brilho metálico de uma distopia onde a carne ainda pulsa sob o aço. Fred Beltran rompe com o padrão tradicional do traço europeu ao adotar um acabamento que remete ao CGI, criando um efeito visual que pode dividir opiniões, mas que certamente amplia o estranhamento — esse que é um dos pilares da ficção jodorowskyana. Ao abraçar esse artifício gráfico, a obra se diferencia ainda mais das outras partes do Jodoverso, sem, no entanto, perder a coesão com os temas centrais que costuram todas as criações do autor: espiritualidade, libertação e transformação.
Megalex é, acima de tudo, um grito contra o conformismo. É uma obra sobre libertar a mente antes mesmo do corpo, sobre reconhecer que a distorção da natureza é também uma distorção da alma, e que só a conexão com o caos primordial pode nos restaurar. Como toda obra de Jodorowsky, exige do leitor não apenas entrega, mas abertura: não se lê Megalex da mesma forma que se consome uma space opera tradicional. Aqui, cada página tem o peso de um sonho lúcido, cada personagem carrega simbolismos profundos, cada cena é uma alucinação sagrada — e, por isso mesmo, essencial.
A edição brasileira da Pipoca & Nanquim faz jus à grandeza da obra. O formato luxuoso, com capa dura, papel couchê de alta gramatura e uma tradução cuidadosa, transforma a leitura em uma experiência tátil e visual à altura da complexidade do quadrinho. É uma peça de coleção, mas também uma convocação à resistência — como se o próprio livro, em sua materialidade, se opusesse ao conteúdo artificial do universo que retrata.
Em um tempo em que a ficção científica parece ter sido domesticada pelo mainstream, Jodorowsky continua sendo uma força selvagem. Megalex não é uma leitura fácil, nem pretende ser. É provocativa, excessiva, onírica, sensual e por vezes desconcertante. Mas, como toda boa distopia, ela não apenas denuncia — ela propõe. Ao final da leitura, o que resta é a inquietação: e se já estivermos vivendo em Megalex? E, mais importante: o que estamos fazendo para fugir dele?
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