Se Eu Tivesse Pernas, Eu Te Chutaria
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Se Eu Tivesse Pernas, Eu Te Chutaria mostra o lado desagradável da maternidade

Existe um movimento do cinema contemporâneo que se recusa a romantizar a maternidade, tratando-a como algo opressivo, invasivo e despersonalizante. Em Canina, filme de Marielle Heller baseado no romance de Rachel Yoder, uma artista está tão exausta e sem perspectivas na vida ao lidar com uma criança pequena, que se transforma em uma cadela selvagem à noite. Já a diretora Maggie Gyllenhaal dramatizou a ambivalência materna em sua adaptação de A Filha Perdida, em 2021, filme que acompanha uma professora de meia-idade que passa férias no litoral refletindo sobre o fracasso de ser uma mãe antinatural e como foi feliz durante o período em que viveu longe das filhas. Agora Mary Bronstein apresenta sua própria visão sobre o tema. 

Se Eu Tivesse Pernas, Eu Te Chutaria acompanha Linda (Rose Byrne), uma mulher à beira de um colapso. Ela frequentemente deseja poder simplesmente fumar maconha, beber vinho sozinha e acreditar que ainda tem alguma vida própria, mas seu papel de mãe, esposa e terapeuta acaba dominando todo seu tempo. O marido dela (Christian Slater) nunca está em casa, sempre em longas viagens de trabalho, mas em contato constante e irritante, tagarelando ao telefone e fazendo exigências. Seu trabalho como terapeuta envolve conversar com pacientes que ela tem dificuldade em ajudar, enquanto seu terapeuta e colega (Conan O’Brien) está perdendo a paciência com ela.

Ela mora em um apartamento comum em Long Island até que o teto desaba, e então ela é obrigada a se hospedar em um motel de gosto duvidoso com uma recepcionista detestável (Ivy Wolk) e um maconheiro simpático (A$AP Rocky) que fica atrás dela (e acaba sendo o único que oferece alguma forma de conforto para a personagem). Para piorar, sua filha (Delany Quinn), que aparece fora de cena e cuja voz é ouvida através de um choro quase constante, sofre de uma doença misteriosa que a impede de comer e exige que ela seja alimentada por um tubo no estômago. Nunca vemos a menina, nem sequer sabemos seu nome, embora a ouçamos tagarelar sem parar. Linda não está esgotada apenas por ter que lidar com os problemas da filha, mas também pela total falta de compreensão e apoio das pessoas ao seu redor.

Ao não mostrar o rosto da criança, a filha deixa de ser uma personagem convencional e passa a funcionar como uma presença sonora e mecânica através da voz, do choro e dos sons de alarmes, tubos e máquinas. Isso não desumaniza a criança, apenas expõe o limite da percepção de uma mãe levada à exaustão absoluta. Quando o amor é sugado até o osso, o outro deixa de ser um indivíduo e se torna ruído, obrigação, peso físico e emocional. É uma representação brutalmente honesta de um pensamento considerado tabu.

Rose Byrne a interpreta Linda com tudo o que tem e mais um pouco, mergulhada de cabeça em uma experiência intensa e visceral, daquelas que ela nunca teve a oportunidade de mostrar até agora, já que normalmente vemos a atriz em papéis mais voltados para a comédia. Isso já rendeu um prêmio no Festival de Cinema de Berlim para a atriz, que certamente veremos na temporada de premiações.

Linda é uma protagonista forte cujas decisões podem ser frustrantes, mas o filme mantém o espectador torcendo por ela, que anseia por dormir a noite toda ou que simplesmente encontre alguém para ajudá-la. Embora o foco seja o aumento do estresse que a maternidade traz, há um apelo com o qual muitos que já se sentiram sozinhos e inseguros podem se identificar. O filme carrega essa mesma sensação de ansiedade constante, algo que pode ser sufocante e, ao mesmo tempo, extremamente exaustivo. É um retrato da maternidade moderna como um ataque de pânico constante, com o tratamento sombrio característico da A24.

O design de som é central para essa experiência. O filme praticamente não permite silêncio e mesmo nos raros momentos em que Linda está sozinha, há um zumbido, um telefone vibrando, um monitor ligado. Essa cacofonia constante cria um estado de ansiedade que espelha o da protagonista. Visualmente, o filme adota uma estética claustrofóbica, com enquadramentos fechados e uma câmera que raramente concede espaço ou alívio. Essa linguagem reforça a ideia de que Linda não possui margem para erro, descanso ou autonomia. Tudo está sempre muito perto, muito alto, muito urgente.

Se Eu Tivesse Pernas, Eu Te Chutaria não é apenas um filme sobre maternidade, mas sobre o colapso da identidade feminina sob expectativas impossíveis. Ele não oferece respostas nem soluções, apenas a validação de um sentimento frequentemente silenciado: o de que amar não impede o esgotamento, e que cuidar pode, sim, destruir quem cuida. É um filme desconfortável, sufocante e necessário.

Se Eu Tivesse Pernas, Eu Te Chutaria estreia em 1° de janeiro de 2026, com distribuição da Synapse Distribution.

3.5

Muito bom

Se Eu Tivesse Pernas, Eu Te Chutaria retrata a maternidade como experiência de esgotamento extremo e coloca o espectador dentro do colapso emocional da protagonista, vivida de forma visceral por Rose Byrne.

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