Em Livros Restantes, depois de toda uma vida enraizada em uma pequena comunidade pesqueira de Florianópolis, a professora Ana Catarina (Denise Fraga) se prepara para uma mudança radical. Prestes à partir para Portugal, ela começa a se desfazer de tudo o que possui. A casa fica vazia, exceto pela mala com roupas que ela vai levar consigo e por cinco livros, que ela está com uma dificuldade enorme de desapegar. Não são livros raros, nem valiosos pelo conteúdo. O valor está nas dedicatórias, escritas por pessoas que marcaram fases diferentes de sua vida, desde a adolescência inquieta até os anos de maturidade, passando por amores mal resolvidos, amizades que se perderam no tempo e parcerias que deixaram cicatrizes.
Decidida a não levar esses livros em sua mudança, Ana escolhe uma saída simbólica: reencontrar cada uma dessas pessoas e devolver os livros para quem a presenteou. Para ela, isso talvez seja uma maneira de fechar ciclos, uma tentativa de se despedir definitivamente de uma versão de si mesma. O que ela não previa era que essa série de reencontros mexeria também em dores que julgava adormecidas. Alguns reencontros acontecem depois de vinte anos de silêncio e de anos que mudaram todo mundo, inclusive ela.
Com seu primeiro grande amor frustrado, Ana revive a sensação de não ter sido suficiente, mas também a libertação de perceber que nenhum dos dois caberia mais no outro. Com uma amiga de adolescência, encontra o reflexo da própria coragem perdida e descobre que a distância entre elas talvez sempre tenha sido menos geográfica e mais afetiva. Com o ex-marido, a professora revive o peso das expectativas, mas reencontra também a chama de ideais que pensava ter apagado. E com o amigo tímido que sempre a viu melhor do que ela própria, Ana descobre que alguns laços sobrevivem ao tempo, mesmo que transformados.
Esses retornos, carregados de memórias e silêncios, acabam por desencadear uma movimentação inesperada dentro dela: o rearranjo de seu próprio passado. Ao entregar os livros, Ana sente como se entregasse partes de si, as partes que guardou por excesso de zelo, medo ou saudade. As conversas, às vezes incômodas, às vezes ternas, revelam traumas que ela jamais nomeou, situações soterradas pelo hábito de seguir em frente sem se permitir sentir. Ana percebe que só poderá realmente partir, para Portugal e para a nova vida que deseja construir, se fizer um mergulho honesto nas profundezas de sua memória. Não basta arrumar malas, é preciso se arrumar por dentro.

No fim, a entrega dos livros deixa de ser um gesto de despedida e se transforma em um ritual de passagem. Cada reencontro, cada conversa, cada emoção reacendida funciona como uma chave que abre tantas portas quanto fecha: a do perdão, a do luto, a do desejo, a da coragem. Isso faz com que o presente tenha espaço para florescer e que o futuro se torne, enfim, um caminho libertário, não guiado pelo medo ou pela nostalgia, mas pela leveza de quem se reencontrou.
Denise Fraga entrega uma Ana profundamente humana e tangível, conduzindo cada cena com nuances sutis, seja na forma como sua voz carrega o peso de cinco décadas de vida, seja nos gestos nervosos que revelam vulnerabilidades que a personagem não verbaliza. Ao revisitar partes sensíveis de seu passado, Ana se mostra simultaneamente esperta e ingênua, resistente e delicada. É justamente nessa sobreposição de contradições que Denise Fraga encontra a alma da personagem, refletindo a própria ambiguidade da vida. O elenco de apoio também desempenha papel essencial na construção desse retrato, oferecendo a sustentação necessária para que o trabalho de Fraga brilhe ainda mais.
Escrito e dirigido por Márcia Paraíso, seu terceiro longa-metragem de ficção Livros Restantes é um filme bastante sensível, no qual mergulhamos nos na intimidade de sua protagonista. Muito humano e emocional, nos faz refletir sobre como lidar com o fato de que as pessoas podem não ser mais as mesmas hoje do que eram quando elas mudaram nossas vidas. A força do filme reside justamente em mostrar as inseguranças reconhecíveis, as mudanças inevitáveis e as distâncias que o tempo impõe entre as pessoas. É uma obra que olha para a memória não com nostalgia indulgente, mas com a coragem de aceitar que algumas páginas do passado precisam ser revisitadas e outras, simplesmente deixadas para trás.
Livros Restantes chega aos cinemas em 11 de dezembro, com distribuição da H2O Films.
Muito bom
Livros Restantes revela que, para seguir adiante, Ana precisa revisitar afetos antigos e devolver partes de si guardadas em silêncio. Seus reencontros transformam despedidas em descobertas, permitindo que ela enxergue quem já foi e quem deseja ser. No fim, o filme mostra que partir não é abandonar o passado, mas reorganizá-lo para que o futuro possa florescer.