Jeanne Dielman
Divulgação
Jeanne Dielman
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Jeanne Dielman é um retrato radical do cotidiano feminino

Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles, lançado em 1975 pela diretora belga Chantal Akerman, está disponível no catálogo da plataforma FILMICCA, serviço de streaming que tem o compromisso de apresentar filmes e cineastas que não tiveram muita chance nos cinemas brasileiros. Além disso, o longa estreia em 11 de setembro nos cinemas nacionais, em versão restaurada.

Realizado por uma diretora de apenas 24 anos e considerado uma obra-prima feminista, o filme minimalista acompanha três dias na vida de Jeanne (Delphine Seyrig), uma dona de casa viúva e solitária, cujas tarefas incluem arrumar as camas e o apartamento, preparar o jantar para seu filho adolescente Sylvain (Jan Decorte) e trabalhar como prostituta para clientes fiéis, cada um com seu próprio dia – atividade que, embora central à sua vida, permanece invisível ao olhar da câmera, ao contrário de outros trabalhos tediosos que ela realiza e acompanhamos em detalhes. Tudo é precisamente cronometrado, com Jeanne administrando sua vida diária com precisão. Porém, lentamente, sua rotina diária ritualizada começa a desmoronar.

Acompanhamos tudo isso à partir de um visão propositalmente distanciada. Chantal Akerman evita closes ou ângulos excessivamente manipuladores, dando ao filme uma sensação de realismo bruto. São longas tomadas da protagonista descascando batatas, limpando a banheira, arrumando seu quarto ou esperando o elevador. Um trabalho íntimo sobre uma dona de casa comum vivendo uma vida discreta. E ela parece estar bem com isso, pois se move pelo apartamento com confiança e facilidade, desempenhando suas funções com graciosa destreza.

O filme, que tem mais de 3 horas de duração e um ritmo propositalmente lento, exige concentração total e ausência de pausas, pois as reviravoltas na rotina são mostradas em pequenas nuances em meio aos movimentos repetitivos. É uma história tão mundana, mas que você precisa absorver. Sem cortes, simplesmente olhamos para o que está à nossa frente e começamos a notar detalhes que, de outra forma, seriam ignorados, também passamos a notar coisas perturbadoras que parecem um pouco fora do lugar – uma luz azul sinistra pisca na escuridão da janela lá fora, uma câmera que fica fixa em um ponto mesmo depois da protagonista ter saído. Não há trilha sonora, apenas um pouco de rádio à noite e os sons das tarefas, que beiram o ASMR. Os diálogos também escassos. Isso pode até parecer tedioso, mas existe algo de hipnótico nessa rotina mecânica, extremamente repetitiva do primeiro terço de filme e na falta de expressão de Jeanne. Tudo é calculado para instaurar uma atmosfera de tensão crescente, sem recorrer a artifícios narrativos óbvios.

Já no segundo dia (e também segundo terço do filme), após atender um cliente, pequenas coisas começam a sair do controle: Jeanne cozinha demais as batatas e começa a pular etapas de sua rotina.  Isso piora cada vez mais, levando à conclusão surpreendente do filme. Talvez, o esforço de Jeanne para estar totalmente no controle o tempo todo seja justamente o que faz com que as coisas passem a desandar. Essas pequenas coisas que lhe dão conforto e propósito, servem apenas para mantê-la emocional e psicologicamente isolada dos outros, o que fica bem claro ao observarmos a breve interação com a vizinha, a relação distante com a irmã e o vínculo frio com o filho. A perfeição absoluta de suas roupas, maquiagem e cabelo, paradoxalmente, sugerem uma necessidade obsessiva de manter as aparências e ocultar o que se passa no interior.

Jeanne Dielman aborda questões contemporâneas sobre trabalho doméstico, trabalho sexual, maternidade, a solidão da vida de uma dona de casa e a marginalização feminina. A ausência de um enredo tradicional e a exibição excruciante de cada pequena coisa que Jeanne faz em seus dias têm uma grande potência temática por trás disso, mostrando como o trabalho de uma mulher nunca termina e destacando a falta de reconhecimento dado às donas de casa e mães solo. No filme, o cotidiano das mulheres é valorizado e retratado de forma não sexualizada. O que parecia ser apenas uma crônica silenciosa do cotidiano, revela-se como uma meditação profunda sobre opressão, controle e alienação.

Jeanne Dielman chega aos cinemas em 11 de setembro, com distribuição da FILMICCA. Além desse filme, Akerman também tem outros 17 trabalhos já disponíveis no catálogo do serviço de streaming.

4

Ótimo

Jeanne Dielman continua relevante e provocador, 50 anos após seu lançamento. É um filme que exige tempo, paciência e entrega do espectador, mas que nos convida a repensar os espaços da mulher na sociedade de uma forma diferente de tudo que vemos no cinema atual.

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