Foi Apenas um Acidente
Foi Apenas um Acidente

Foi Apenas um Acidente, um estudo sobre trauma e vingança

Foi Apenas um Acidente é o primeiro filme de Jafar Panahi (Táxi Teerã) desde que foi libertado da prisão no Irã após ser acusado de fazer propaganda antigovernamental – e antes de ser mandado para lá novamente esta semana. Escrito e dirigido pelo muitas vezes injustamente julgado diretor, foi o filme vencedor da Palma de Ouro em Cannes e o escolhido como representante da França na disputa por uma indicação ao Oscar.

Na trama, Eghbal (Ebrahim Azizi) está dirigindo para casa à noite com sua esposa grávida (Afssaneh Najmabadi) e sua filha pequena (Delmaz Najafi) quando acidentalmente atropela e mata um cachorro. Apesar da tristeza da filha pelo animal, a mãe permanece impassível. Ela culpa Deus e a falta de iluminação pública, que torna os animais presas fáceis naquela estrada. “Foi apenas um acidente”, diz ela.

Isso desencadeia uma série de coincidências. Por conta do acidente, o carro para de funcionar. Um motociclista que passa oferece ajuda se o seguirem até seu local de trabalho, um armazém. É então que o chefe do homem, Vahid (Valid Mobasseri), vê Eghbal e ouve o rangido de sua perna artificial. O som seguinte é o de um verdadeiro inferno instaurado. Vahid acredita que Eghbal seja “Perna de Pau”, um interrogador de uma prisão iraniana onde Vahid foi torturado. Embora os prisioneiros estivessem vendados, Vahid diz que reconheceria o rangido da perna artificial em qualquer lugar. Ele resolve então sequestrar o homem com a prótese na perna e levá-lo para o deserto para enterrá-lo vivo.

Eghbal insiste que não é o torturador, pois sua perna foi amputada apenas um ano antes e ele tem as cicatrizes recentes para provar. Vahid precisa de mais provas, então sai em sua van branca para encontrar outros torturados na mesma prisão. Um deles trabalha em uma livraria e implora por misericórdia, outro diz para matá-lo de qualquer maneira. Outra ex-detenta, Shiva (Maryam Afshari), é fotógrafa de casamentos e leva consigo o noivo Ali (Majid Panahi) e a noiva (Hadis Pakbaten), que está ansiosa para confrontar o homem que a estuprou e torturou.

É assim que se inicia esse drama de vingança disfarçado de road movie, com estranhos reunidos por uma causa comum. Em pouco tempo, a van de Vahid está cheia de passageiros que querem Eghbal morto, mas nenhum deles tem certeza absoluta de que ele seja o culpado, e discutem incessantemente sobre o que fazer a seguir. À medida que percorrem quilômetros, sua jornada se torna literal e filosófica, repleta de paradas e recomeços, digressões e circularidades. Eles criam laços, se aconchegam uns aos outros e compartilham histórias sombrias da prisão, preocupando-se e discutindo sobre os próximos passos. Eles sabem que podem estar cavando suas próprias sepulturas também.

O mistério do homem ser ou não o torturador tem pouca importância, já que o maior interesse está nas emoções que o reaparecimento desse homem provoca naqueles que foram abusados ​​por ele. A invocação do sensorial sugere que essas pessoas são governadas tanto pelo instinto e pela emoção quanto pela lógica, inspirando reações impulsivas alimentadas pela raiva.

Foi Apenas um Acidente funciona como um thriller cômico com uma crítica subversiva ao regime autoritário. É um filme no qual os personagens traumatizados anseiam por justiça – feito por um diretor que é uma dessas pessoas e que traz muito de suas terríveis experiências pessoais para a tela. Conforme o dia passa, muitas situações cômicas vão acontecendo, até chegar em um clímax dramático de força emocional dilacerante, uma sequência tão intensa que é quase possível sentir a fúria saindo pela tela. Acompanhamos esses personagens imaginando se eles recorrerão às mesmas táticas tortuosas que lhes foram impostas e se tais meios realmente os ajudarão a superar seus respectivos traumas.

O filme se afirma como uma obra poderosa justamente por transitar entre a tensão brutal do trauma e a leveza inesperada do humor, expondo como a busca por justiça pode se confundir com impulsos de vingança e desespero. Jafar Panahi transforma um simples incidente noturno em um mergulho profundo nas feridas abertas de um país, mostrando como um regime autoritário continua moldando comportamentos, percepções e reações.

Ao acompanhar esse grupo improvável viajando rumo a um destino indefinido, o diretor constrói um retrato incisivo das contradições que permeiam sociedades marcadas pela repressão. A cada parada, o filme questiona a capacidade de seus personagens (e do espectador) de distinguir justiça de perpetuação da violência, enquanto revela a impossibilidade de cicatrização completa quando a verdade permanece difusa. O resultado é um drama vigoroso, urgente e profundamente humano, que reafirma o talento de Jafar Panahi em transformar experiências pessoais traumáticas em cinema de alcance universal.

Foi Apenas um Acidente chega aos cinemas brasileiros em 4 de dezembro, com distribuição da Imovision.

 

 

4

Ótimo

Foi Apenas um Acidente transforma um episódio banal em um estudo pungente sobre trauma, vingança e memória coletiva, expondo as feridas de um regime opressor. Jafar Panahi conduz a narrativa com humor ácido e tensão crescente, revelando personagens divididos entre justiça e brutalidade.

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