No Japão, o conceito de famílias de aluguel existe desde o século XVII, surgindo inicialmente como uma resposta pragmática às rígidas estruturas sociais e à necessidade de preservar aparências. Contudo, foi a partir da década de 1980 que essa prática ganhou força e maior organização quando treinamentos corporativos passaram a empregar atores para simular situações familiares e sociais, preparando funcionários para interações específicas. Com o tempo, essa prática se expandiu e se transformou em uma indústria peculiar na qual pessoas comuns passaram a contratar grupos de atores profissionais para representar membros da família ou até amigos em situações que variam de casamentos a encontros delicados e despedidas emocionais. Foi desse universo singular, ao mesmo tempo fascinante e perturbador, que a diretora e roteirista japonesa Hikari se inspirou para criar seu filme mais recente, Família de Aluguel.
No filme, acompanhamos Phillip Vandarploueg (Brendan Fraser), um ator solteiro de meia-idade que se mudou para o Japão para estrelar um comercial de pasta de dente há sete anos. Ele participou de uma série de produções de segunda categoria e agora luta para encontrar trabalho. Isolado, deslocado culturalmente e emocionalmente solitário, ele leva uma vida discreta e sem grandes vínculos. Sua rotina muda quando ele aceita um trabalho bem remunerado em uma pequena companhia especializada em interpretar famílias de aluguel. A proposta o deixa inicialmente desconfortável, afinal, existem questões éticas evidentes em fingir ser outra pessoa, ocupar espaços afetivos e enganar famílias inteiras. Philip se pergunta até que ponto a atuação pode ultrapassar os limites do teatro e se tornar uma invasão emocional.
No entanto, à medida que ele passa a conviver com seus colegas de trabalho, aprende como funciona essa atividade peculiar e começa a perceber o impacto real que essas encenações têm na vida das pessoas, sua resistência vai se dissolvendo. O trabalho deixa de ser apenas uma atuação e passa a se tornar uma forma inesperada de conexão humana. Philip se envolve emocionalmente com seus personagens e, paradoxalmente, encontra propósito justamente ao interpretar vidas que não são as suas.
Duas histórias específicas envolvendo clientes de Philip se destacam e estruturam emocionalmente o filme, pois apresentam sérios dilemas morais. A primeira é a de uma garotinha, Mia (Shannon Gorman), de 11 anos, e sua mãe solo (Shino Shinozaki) , que precisam da presença de um pai e marido fictício para que a criança seja aceita em uma nova escola. Claramente, uma crítica direta às estruturas familiares tradicionais ainda exigidas por muitas instituições japonesas.
A segunda envolve uma estrela de cinema decadente, chamado Kikuo (Akira Emoto), que está começando a perder a memória. Ele é alguém que já viveu o auge da fama e agora enfrenta o esquecimento, a solidão e a perda de identidade. Os encontros entre Philip e esse ator são especialmente marcantes: há humor, melancolia e uma cumplicidade silenciosa que transforma cenas simples em momentos profundamente humanos. Ambas as tramas tratam de temas pesados, mas que são bem abordados. Além disso, o roteiro encontra os momentos certos para injetar um pouco de humor leve na trama.

Visualmente, Família de Aluguel é muito belo. A cinematografia é cuidadosamente construída, com enquadramentos delicados e uma paleta de cores que reflete tanto a beleza quanto a contenção emocional da cultura japonesa. A câmera observa mais do que julga, permitindo que o público seja transportado para a terra do sol nascente de maneira respeitosa e contemplativa. As diferenças culturais são apresentadas de forma orgânica, sem didatismo excessivo, enriquecendo a narrativa e tornando a experiência ainda mais imersiva.
No centro de tudo, o filme se revela uma obra encantadora sobre a importância da conexão humana, que vai muito além dos laços sanguíneos. Hikari constrói uma crítica sutil, porém contundente, aos rígidos códigos sociais do Japão, que frequentemente obrigam indivíduos que não se encaixam nas normas a viverem vidas duplas para preservar vínculos familiares, profissionais e comunitários. Nesse contexto, as famílias de aluguel não surgem como uma farsa cruel, mas como um sintoma de uma sociedade que valoriza a aparência mais do que a verdade emocional. O roteiro utiliza o humor como ferramenta essencial para revelar as nuances e contradições dessa cultura rígida. O riso surge não como deboche, mas como alívio e empatia.
Brendan Fraser entrega uma atuação especialmente tocante como Philip, um personagem vulnerável, contido e profundamente humano. É impossível não sentir vontade de abraçá-lo através da tela. Seu desempenho transmite uma melancolia silenciosa que se transforma, pouco a pouco, em ternura e esperança. O elenco como um todo equilibra peso e leveza com precisão, permitindo que o público acredite plenamente naquelas relações encenadas, que, ironicamente, muitas vezes parecem mais genuínas do que laços reais. Ele mostra como um gaijin no Japão sabe que poderia viver lá para sempre e nunca conseguir compreender totalmente a cultura, mas nunca deixará de tentar entender ou respeitar.
Família de Aluguel é, em última instância, uma história sobre o próprio ato de atuar, não apenas para as telas ou no teatro, mas na vida. Fundamentado no cuidado com a comunidade, o filme valoriza os diversos tipos de trabalho que atores realizam e que impactam positivamente a vida de pessoas comuns. Embora interpretar famílias de aluguel não seja uma prática comum em outros lugares do mundo, o longa nos lembra que existem muitas outras formas de atuação invisíveis ao grande público, mas igualmente transformadoras.
O filme de Hikari celebra esses papéis, oferecendo a cada artista a chance de interpretar personagens complexos que tocam o coração, provocam reflexão e nos lembram do impacto positivo que podemos ter na vida uns dos outros, mesmo que por um breve momento. Este é o tipo de filme ideal para assistir quando estamos cansados de más notícias e apenas queremos nos entregar a um humor comovente, delicado e profundamente humano.
Família De Aluguel chega aos cinemas em 8 de janeiro de 2026, novo filme da Searchlight Pictures.
Ótimo
Família de Aluguel usa a prática japonesa das famílias de aluguel para refletir, com delicadeza e humor, sobre solidão, pertencimento e os limites entre atuação e afeto real. Brendan Fraser entrega uma atuação contida e comovente, que transforma o artifício da encenação em uma poderosa experiência de conexão humana.