Baseado no romance homônimo da aclamada autora Ana Paula Maia e com Selton Mello e Marjorie Estiano como os protagonistas, Enterre Seus Mortos acompanha Edgar Wilson, homem soturno que trabalha como removedor de animais atropelados em estradas. Seu colega de trabalho é um padre excomungado, Tomás (Danilo Grangheia) e ele namora Nete (Marjorie Estiano), sua chefe e quem lhe passa as chamadas das ocorrências. O cenário é a fictícia Abalurdes, pequena cidade marcada por acontecimentos peculiares e um clima de apocalipse iminente. Porém, chega um momento em que Edgar é obrigado a violar as regras do seu trabalho e o caos passa a imperar em sua vida e na cidade.
No dia 27 de setembro, tivemos a oportunidade de participar de uma exibição do filme no escritório da O2 Filmes, seguida por uma coletiva de imprensa que contou com a presença de Selton Mello, Gilda Nomacce e do diretor Marcos Dutra. Confira o que rolou no bate papo:
Pra começar, Selton Mello contou como foi trabalhar pela primeira vez com o Marco Dutra, o que ele sentiu quando leu o roteiro pela primeira vez e o que mais chamou a atenção no personagem Edgar Wilson. “Bom, eu acompanhava o trabalho do Marco.Fiquei encantado com o ‘Trabalhar Cansa’. É aquele filme junto com a Juliana [Rojas], a parceria que ele tem com a Juliana. É um filme de terror, mas é uma crítica social.É uma mistura que eu não lembrava de ter visto. Então eu achei aquilo muito inusitado, muito novo. ‘Boas Maneiras’ também.Me causou um espanto e ao mesmo tempo era divertido também. Ao mesmo tempo daquela loucura toda.Então assim, já tava de olho. Já tava um espectador no trabalho dele. Ele me mandou esse roteiro e foi um dos melhores roteiros que eu já li na vida.Eu fiquei louco com esse roteiro.E foi muito interessante, porque ele me causou encantamento e repulsa. Eu fiquei assim, uau, que filmaço, que história absurda e esse Edgar Wilson é um personagem extraordinário, mas não vou fazer esse negócio não. Sei lá, sangue, esses bichos, esses negócios.Eu falei, não vou.Eu não sou exatamente um fã de filme de terror. Não acompanho muito, não vejo tanto.Agora sei mais, porque eu trabalhei com o Marco.Então eu aprendi com o Marco. Mas entendeu?Eu fiquei assim, encantado e meio, não vou meter nisso”.
Ele complementa, “e isso tudo pra dizer que, na verdade, fazer um filme de terror foi muito mais divertido do que eu supunha. Leve. Foi leve. Fazer esse filme foi leve. Foi divertido. O Marco é uma figura muito doce, muito agradável no dia a dia de tocar um set.O condutor ali da coisa. Então era um filme denso, mas num ambiente muito agradável.Aí eu imagino um pouco a criança que tem medo do espantalho e depois o que vai ver ali é um bicho com feno. É um negócio com um feno dentro.Não precisa ter medo daquilo.Então eu acho que é um pouco isso. Talvez a repulsa foi um pouco o Selton criança, meio com medo de coisas bobas.E isso tem a ver um pouco com o filme, talvez. ‘Enterre Seus Mortos’, tem metáforas aí nesse título”.

Marco Dutra falou sobre as dificuldades de adaptar o livro de Ana Paula Maia para o cinema, “eu acho que é sempre difícil e desafiador de várias formas. O lado bom de todas as vezes que eu adaptei é que eu tinha, de certa forma, o autor por perto. E com a Ana Paula não foi diferente. Ela leu versões do roteiro e se comunicou comigo. E me abriu muitas possibilidades para eu fazer o que eu quisesse. Porque, no fundo, eu não gosto muito da ideia de fazer um xerox do livro. Como quando tem… Sei lá, lembro que as pessoas reclamavam que mudaram um negocinho no ‘Harry Potter’ e aí não estava igual. E aí, não sei, para mim isso nunca fez o menor sentido. Eu sempre achei que são duas linguagens completamente diferentes e tal”.
“No caso do livro da Ana Paula, o que me impactou muito foi o que tentei levar para o filme, que é uma sensação de mistério. Existe uma sensação de fim iminente de todas as coisas, que não se sabe bem de onde vem. Se é uma coisa bíblica, se é uma coisa climática, se é uma coisa política, se é uma coisa de saúde. E eu estava escrevendo em 2020, então era durante a pandemia. A gente filmou ainda durante… Com protocolos de covid até o fim. Então tinha uma sensação muito estranha. Teve uma hora escrevendo que eu até falei gente, será que alguém vai querer? Porque era um momento complicado e tal. Mas eu queria atacar essa sensação de fim que é uma sensação muito sombria. E ao mesmo tempo expandir alguns elementos enigmáticos que a Ana Paula Maia esboça no livro. E incluir algumas coisas minhas para poder expandir esse universo dramaticamente. Porque dramaturgia e literatura são formas muito diferentes. Então foi, sim, bem difícil de escrever. E eu sei que as pessoas que leem o livro e gostam, veem que tem muita coisa… Muita novidade e tal. Mas eu sempre estive próximo da Ana Paula Maia e conectado ao livro. Eu andava na filmagem com o roteiro e o livro comigo, inclusive. Sempre abria ali numa página e falava essa frase que de repente dá pra botar numa cena e tal”, complementa o diretor.
Como Selton Mello já revelou, ele não é o maior fã de terror e nunca tinha trabalhado em um filme do gênero. Por esse motivo, viver Edgar Wilson na telona veio com alguns desafios. “Foi muito legal, foi muito novo pra mim. Tudo que é novo é estimulante. Trabalhar com o Marco, num gênero que eu nunca tinha feito, num personagem que carrega uma carga espiritual tão gigante que ele mal consegue se mover e se comunicar. Por isso ele é tão esquisito, porque na verdade ele tá lutando contra coisas dentro dele muito poderosas. Então é um personagem que se você cutucar de um jeito meio errado, nem um longa-metragem daria, porque ia acontecer algo que ia acabar logo num curta. Então esse personagem que tá o tempo todo sob pressão interna foi muito fascinante. E também a gente mistura, brinca com o gênero do faroeste, por exemplo. Faroeste, Clint Eastwood, lobo solitário, homem de poucas palavras, Edgar Wilson, é dessa linhagem de personagens. Eu tinha um prazer muito grande em cortar falas. Os atores geralmente gostam de falar. Eu queria cortar falas. E eu sempre defendia pro Marco, aqui ele podia não falar. Aqui nada, porque tá dentro. É meio faroeste nesse sentido. Então cara, foi tudo novo. A única parte que eu não gostei e realmente é difícil pra mim é noturna. Noturna é uma roubada, minha gente. Noturna não dá, não. Filme de terror é noturna, basicamente. Então você trabalha de cinco da tarde até cinco da manhã, dorme durante o dia, ou não dorme durante o dia, porque de dia tem obra, de dia as pessoas fazem barulho. Então a vida fica muito louca. Então assim, essa parte, a única parte que eu não gostei foi tudo noite”.

Além de muitas cenas noturnas, para pesadelo de Selton Mello, o filme também contou com muitas cenas externas, um tipo de trabalho que é muito mais difícil de controlar do que em um ambiente fechado. Simplesmente, não tem como evitar passar um perrengue ou outro nesse tipo de gravação e em Enterre Seus Mortos não podia faltar algum. Marco Dutra brincou que “tem uma que tá até registrada. Que falhou o freio do carro, da caminhonete. A gente quase morreu. Nenhum problema grave”.
O diretor continua, “Acho que, pra mim, foi a primeira vez que eu filmei tanto na estrada. Então você fica mais sujeito ao tempo, sujeito a tudo. Sujeito a ter que fechar a estrada, a não fechar a estrada. E os planos que a gente desenhou não eram exatamente os mais fáceis do mundo. O Selton dirigiu pra caramba aquela caminhonete. Não é só câmera car, sabe? Tem planos… tem um plano que tem um acidente de carro pegando fogo. que é um plano que eu insisti muito. E a produção falou, não, não vai dar pra fazer isso. Mas era basicamente o Selton e o Danilo na caminhonete vindo lá do fim do mundo, dirigindo com a câmera na caçamba. A câmera gira. Não é 360, mas sei lá, 200 graus. Então não podia ter ninguém da equipe. Era o Selton, o Danilo, a Aline, que era a nossa coordenadora de dublês. E a gente falou, não dá pra colocar uma… Ela falou, não, eu faço, eu faço. Eu não vou ser atropelada pela caminhonete, pode deixar. E o Martão dos efeitos acende o fogo, vai lá. Aí vai. Depois de meia hora, a gente vai ver a cena quando chega na base, vamos dar play. E deu certo. A gente só fez mais um take só por diversão. Mas eu acho que eu usei o primeiro. Então esse tipo de coisa é desafiador, mas é divertido também. E era parte da intenção do filme trabalhar bem as cenas de espaço, porque o espaço é importante. Já que o mundo… Algo está vindo pra nos esmagar, engolir de alguma forma. É importante colocar os personagens nesses espaços. E me tirar um pouco do conforto também, porque eu tendo a querer filmar mais espaços domésticos“.
Enterre Seus Mortos chega aos cinemas no fim do mês, mas já está sendo exibido em festivais há mais de um ano. Marco Dutra falou sobre a importância de viajar com o filme e exibi-lo para vários tipos de público. Também refletiu se as experiências dos espectadores o fizeram querem mudar algo depois do filme pronto, “se eu entrar nessa coisa de querer mexer nos filmes aí, é um caminho meio maluco. Tipo, virou George Lucas, sabe? Não para de mexer nunca. Não existe o filme, porque cada vez que você vê o filme tem alguma coisa, você não sabe mais o que o filme é. Mas eu acho que por conta disso eu não mexeria. Esse é o, tipo, o corte, sei lá, o ‘director’s cut’ é esse. No meu caso, sempre foi assim. Mas, claro que eu posso… Tem cenas deletadas, esse filme tinha muito mais duração. Lembra quando tinha três horas e meia? Tem coisas que eu gostaria de mostrar para as pessoas como coisas mais completas, porque a gente construiu coisas mais completas nesse universo que podem ser compartilhadas em breve”.
Ele continua, “mas a coisa de viajar é assim, eu não sei, é uma coisa que se estabeleceu um pouco de ir lançando os filmes nos festivais e entendendo como é a reação das pessoas. Até para vender para os mercados internacionais também, porque é um jeito para as pessoas que estão lá comprando filmes verem. Ah, eu quero lançar no Japão, eu quero lançar nos Estados Unidos, quero não sei o quê. Então é um jeito de fazer o filme existir mundialmente, não só localmente. E isso é legal. E é legal também ver, para nós como equipe, é legal ver como as pessoas reagem diferente em cada lugar também. Eu não tenho nenhuma conclusão específica. Eu exibi o filme em Tóquio, foi a primeira vez que eu fui ao Japão, e foi muito legal, as perguntas foram muito boas, foi uma experiência muito legal. Não sei dizer exatamente porquê, não conheço o gosto e as maneiras japonesas profundamente para dizer o porquê, mas que tem uma diferença nas leituras, em como os assuntos batem nas pessoas, sempre tem. Porque as pessoas são diferentes, né?”

Edgar Wilson é um personagem recorrente nas obras de Ana Paula Maia e nós perguntamos para Marco Dutra se existe vontade de fazer novos filmes baseados nos livros da autora, até mesmo trazendo alguns dos personagens de volta, ele disse que sim, tem essa vontade. “É uma coisa curiosa, porque quando o segundo livro da ‘Trilogia do Fim’, que é o ‘De Cada Quinhentos Uma Alma’, saiu, e depois o ‘Búfalo Selvagens’…Quando saiu o segundo, a gente estava em pré-produção já. E eu conversava com a Ana, e a Ana falava, ah, eu tô bolando uma sequência aí. Eu falei, você não quer me contar, né? E ela já tinha lido o roteiro e tal. E, óbvio, quando eu li o segundo livro, eu já falei, nossa, já não… Assim, se for ter uma sequência desse filme, eventualmente, já teria que ser muito diferente em relação ao que ela fez no segundo livro, por razões óbvias, assim, dos destinos de alguns personagens do filme.Mas é um universo muito interessante. Eu li tudo o que tinha da Ana Paula Maia até entãopra conhecer melhor os personagens, pra conhecer melhor, especialmente, o Edgar Wilson, que tá em muitos dos livros.E até teve uma época que eu até fiquei com vontade, assim, de tipo, vamos trazer o Bronco Gil, trazer figuras que aparecem desse universo do Edgar Wilson nos outros livros.Mas seria um pouco injusto, porque a gente só tinha os direitos pra adaptar ‘Enterre Seus Mortos’, e não a obra inteira de Ana Paula Maia. Mas eu acho que é uma obra, sim, independente de este filme gerar uma sequência ou não,acho que não é tanto a questão, eu acho que é uma obra que dá muito caldo pro audiovisual em muitas esferas.Dá pra fazer muita coisa baseada nesse universo, que é um universo muito rico, o da literatura dela”.
Quando todos achavam que a coletiva estava chegando ao fim, a atriz Gilda Nomacce é chamada para uma homenagem e para participar da conversa. Selton Mello fala sobre o episódio em que a atriz foi divulgar o filme no Festival do Maranhão e teve uma atitude que foge dos moldes do mundo “tão careta e tão comportadinho” em que vivemos, ao gritar com ares de filme de terror para falar sobre Enterre Seus Mortos. Isso fez com que a atriz virasse meme e viralizasse nas redes sociais. Selton também diz que “o que mais tem no Brasil são Gildas, grandes atores que não têm esse espaço” e que muitas vezes seguidores e likes se tornam mais relevantes na hora da divulgação do que o trabalho em si.
A atriz ficou emocionada com o momento, “meu Deus, vocês devem imaginar o que é um ator, um artista, um pensador, que é o Selton, falar de mim. Faz com que a minha família entenda que eu sou atriz. Ele me dá um lugar que eu luto há tantos anos. É tanta generosidade um grande ator, que tá estabelecido…”
Gilda Nomacce também falou sobre a sua primeira oportunidade de trabalhar no cinema, “eu trabalho muito, eu faço muitos filmes, eu tô agora fazendo uma peça, vou estrear em novembro. Fiz uma ópera belga no Teatro Municipal no ano passado, eu faço coisas bastante expressivas. E pra mim, hoje, estar aqui diante de todos vocês, nesse lugar, na O2, com o Marco Dutra que escreve pra mim o meu primeiro papel no cinema… Eu já tinha muitos anos de teatro, eu fiquei no grupo do Antunes Filho durante oito anos e tinha acabado de sair do grupo e formei uma companhia. Foi lá que o Marco Dutra me encontrou e foi lá que eu fiz a primeira vez uma peça, um trabalho com o Lourenço Mutarelli. E aí o Marco me ligou e falou, ‘Gilda, eu gostaria de te chamar pro filme, é só uma cena, mas é um papel que nós escrevemos pra você, a Liciane'”.
Ela continua, “ele estava falando de uma cena e na minha cabeça eu tava pensando, ai, agora eu vou conseguir fazer essa carreira. Tanto que eu cheguei com uma mala que é inesquecível no set, porque eu só tinha que fazer uma cena no supermercado, mas eu levei uma mala de viagem internacional pra fazer uma compra no supermercado, porque eu peguei a chance. É isso que é abertura de quem faz isso, meu Deus, eu tô aqui muito emocionada, muito emocionada, porque talvez, ainda que eu não continue vivendo esse momento da viralização, eu pra sempre vou ter tido essa experiência que é muito emocionante, te agradeço demais, é realmente uma coisa que eu nem sonhava viver na minha vida. Ter sido atravessada por esse meme, sendo eu de um período onde nem internet tinha, e sendo uma atriz de uma geração que poucas resistiram, porque se vocês olharem atrizes de 18, 20, 30, vão sumindo, né? E ainda mais quando não está nesse lugar que o Selton disse, que todo mundo sabe… Eu sou uma resistência, porque eu resisto de todas as formas, porque eu tenho essa alegria de ser atriz, essa alegria de estar no cinema nacional, essa alegria de fazer filmes com pessoas geniais como eu tô aqui agora, obrigada, obrigada, obrigada, e ser reconhecida, tô me sentindo muito homenageada, então eu quero… eu gostaria de me jogar aqui no chão. Obrigada. Obrigada”.
Enterre Seus Mortos chega aos cinemas às vésperas do Halloween, no dia 30 de outubro, com distribuição da O2 Play.