É inegável a contribuição de Phillip K. Dick para o mundo da ficção científica, onde o autor aborda temas fundamentais para o nosso cotidiano e, quiçá, para um futuro não tão distante. Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? é o alicerce para o surgimento da aclamada obra de Ridley Scott, Blade Runner. O diretor possui um dom indiscutível para a criação de mundos e, a sua visão pessimista, a ambientação sci-fi noir (que é uma das primeiras obras cinematográficas a flertar com o cyberpunk) moldam a fotografia deslumbrante do longa-metragem. A beleza de Blade Runner, entretanto, não está apenas em sua estética, mas nas questões filosóficas e sociológicas abordadas, forçando a reflexão do espectador diante de temas que estão à frente do seu tempo (pelo menos em 1982, onde se imaginava que os carros voadores teriam o seu advento em 2000).
O mundo de Blade Runner é permeado pelo crescimento desenfreado das grandes corporações, somados a globalização e a destruição do meio ambiente. As cidades tornaram-se cinzas, com profundas alterações climáticas e difíceis de viver. A colonização do espaço já é uma realidade e, por isso, uma das grandes empresas que dominam a economia (Tyrell Corporation) cria um androide aprimorado, nomeado de Nexus-6, que poderá trabalhar nas empreitadas planetárias como escravos, uma vez que são mais fortes e inteligentes que os próprios engenheiros humanos. Todos esses replicantes (androides) possuem o tempo de vida de quatro anos, já que podem se tornar um risco à sociedade humana quando começarem a questionar sua finitude ou o seu papel social. É deste ponto que o roteiro do filme inicia-se: um grupo de Nexus-6 rebela-se e retorna a Terra em busca de respostas do seu criador.
A obra de Phillip foi publicada em 1968, levantando díspares questionamentos acerca do mundo que ele criou e que podem ser traduzidas para o nosso. Afinal, qual o sentido da vida? Como poderíamos definir o sentido de viver para um humano e um androide? Uma máquina possui alma? Qual a diferença de um ser sintético para um real? Os personagens buscam por um significado e nós, leitores e espectadores, buscamos por respostas para essas indagações. Afinal, nem mesmo o livro ou os dois filmes respondem tais dúvidas. A beleza de Blade Runner está na reflexão e na construção de nossas próprias conjecturas; não existe uma equação matemática com um resultado único. Existe o pensamento, o olhar, as emoções e as nossas memórias que moldam quem somos. Todas essas características tem uma importância fundamental para a compreensão da trama, tal como para a nossa realidade.
Androides sonham com ovelhas elétricas? Seriam os seus sonhos artificiais, como seu próprio corpo? Ou os androides sonham com o tangível? Humanos tem sonhos que buscam a artificialidade e admiram a matéria física; isto é um fato. Dado este ponto, seriam os androides, em sua essência, mais humanos que os próprios seres que os conceberam ao mundo? A sequencia final do clássico Blade Runner – O Caçador de Androides (1982) busca expor essas ideias de uma forma majestosa, contrapondo a figura fria e assassina de Deckard com a redenção de um replicante, Roy. Neste ponto do longa, é conhecido pelo público que o blade runner assassina friamente os androides, contrapondo tudo que poderia envolver seu lado emocional, restando apenas a fria lógica de sobreviver no mundo pessimista de 2019. Roy, por outro lado, se redime, salvando a vida do oficial que aposenta sua espécie para, então, desenvolver um dos monólogos mais belos que a sétima arte já viu. O replicante, metaforicamente falando, encontra a sua alma em seus últimos atos de vida, escancarando todas essas questões para Rick Deckard e mudando drasticamente a sua trajetória daquele ponto em diante.
Na sequência produzida pelo competente Denis Villeuneve, o diretor consegue expor um conceito parecido com o original de 1982, mas de forma mais atual e impactante. Deckard e Rachael tiveram um filho, algo logicamente impossível, já que ela era uma replicante com prazo de validade. Paralelamente a este fato, acompanhamos a busca do blade runner K (uma homenagem clara ao autor Phillip) por respostas envolvendo suas memórias e quem ele realmente é dentro daquele mundo. As histórias cruzam-se num ponto (sem entregar muito do como) em que K acreditar ser o filho concebido desse relacionamento; o milagre e a esperança dos replicantes. Memórias implantadas em seu subconsciente traziam o sofrimento daquele filho, mas que serviam apenas para alimentar sua vontade de ter um propósito ou um significado. K, ao longo do filme, é chamado de Joe; ele deixa de ser simplesmente um androide para ter um nome, para ser alguém e não um número de fábrica. O sentimento move o replicante. A frustração o derruba, mas não o desmotiva a fazer o que passou a acreditar ser correto. O filho desse relação é, na realidade, uma mulher que vive enclausurada em um recinto tecnológico, criando memórias para os novos replicantes em produção. Ana Stelline é uma doutora, que viveu a maior parte de sua vida num mundo artificial, enquanto Joe vivenciou a realidade, os sentimentos, o fulgor da esperança, a desilusão fatal e, por fim, a o seu altruísmo. O filme nos faz ponderar: quem realmente viveu?
“O que eu sou para você?”, é a pergunta de Deckard para K, na tentativa de entender seu gesto de bondade ao salvá-lo e leva-lo de encontro a sua filha. O ex-blade runner tenta miseravelmente compreender o que o fez tomar essa atitude, mas é algo que só Joe pode mensurar. Ao final, percebemos que K se torna mais humano que muitos seres de carne que dividem espaço com ele. O olhar sereno enquanto ele contempla a luz é um indicador de que não há mais amargura; o replicante morre olhando aos céus e se há algo além deles, somente Joe saberá.
“Eu vi coisas que vocês não acreditariam. Naves de ataque em chamas perto da costa de Orion. Vi raios-c cintilando na escuridão próximos ao Portão de Tannhäuser. Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer.”