A Substância | Crítica

Filme estrelado por Demi Moore desafia o público ao mostrar o horror que padrões estéticos são capazes de fazer.

A arte de incomodar ou horrorizar vem sendo cada vez mais banalizada por diversas produções que buscam chocar por meio de cenas grotescas ou violência desmedida. À primeira vista, o potencial de se utilizar dessa decisão artística pode, de fato, causar diversas sensações, mas apenas se for utilizado da maneira e no contexto corretos. Esse recurso estético precisa ter direcionamento e, em muitos casos, é imprescindível que tenha conexão com a mensagem principal do filme.

Em um mundo dominado por aparências, A Substância parece ser a resposta perfeita para uma geração cuja principal característica é focar na estética e superficialidade. Portanto, ciente dessas pressões sociais, principalmente voltadas para as mulheres, a diretora Coraline Fargeat entende que seu filme não precisa se concentrar em sutilezas ou mensagens subliminares. Aqui, ela aposta em uma história de virar o estômago, mas extremamente necessária para os dias de hoje.

Com seu objetivo claro, Fargeat busca chocar ao levantar pautas machistas que a indústria da beleza, majoritariamente dominada por homens brancos e heterossexuais, impõe sobre as mulheres. Sabendo refinar ainda mais sua narrativa, a diretora decide focar no terror corporal, abordando principalmente o ódio que a protagonista tem por si mesma, fruto de anos de controle estético por uma indústria cruel.

A ícone fitness Elisabeth Sparkle, interpretada maravilhosamente por Demi Moore, apresenta um popular programa de televisão de exercícios físicos. Ela vive a vida dos seus sonhos, com reconhecimento mundial e uma estrela na Calçada da Fama. Porém, após descobrir da sua demissão no dia em que completou 50 anos, seu chefe, Harvey (Dennis Quaid), lhe explica que essa decisão não é pessoal, apenas um corte de gastos da emissora (aham… sei).

Após ver sua relevância e sucesso se irem embora, seja pela desconsideração por tantos anos de carreira, seja pela forma como foi feita, Elisabeth se encontra em um declínio emocional e autodestrutivo. Ao descobrir da possibilidade de reviver sua carreira graças a uma droga misteriosa chamada “A Substância”, que promete transformar qualquer pessoa em sua “melhor versão”, ou seja, mais bonita, jovem e perfeita, a protagonista decide participar desse experimento. Seguindo as instruções para realizar o procedimento, invasivo do começo ao fim, ela aplica o produto e, para sua surpresa, ele funciona. O resultado? Elisabeth gera dentro de si o nascimento distorcido e bizarro de Sue (Margaret Qualley) — uma mulher de 20 anos com um corpo, teoricamente, o sonho de todas as mulheres. A partir daqui, ambas, dividindo a mesma consciência, viverão uma vida dupla, com desacordos e intolerâncias sobre qual corpo prevalecerá no final das contas. Mas será que ainda são a mesma pessoa?

O interessante é perceber como o filme nos leva a ter diversos níveis de empatia pelas duas versões, seja a de Elisabeth ou a de Sue. Toda a premissa me fez refletir se ambas eram realmente a mesma pessoa, pois, independentemente de suas inseguranças e das transformações invasivas, uma não existiria sem a outra. É como se entrássemos no dilema de quem é a verdadeira persona transitando entre as duas protagonistas. Durante boa parte da história, o roteiro nos prende nesse dilema, trazendo uma sensação de incômodo que vai além das cenas gráficas. Somos apresentados a poucos personagens e ambientes, o que constrói um sentimento claustrofóbico, sufocando-nos pelas inseguranças demonstradas.

No quesito técnico, A Substância é um show à parte. O diretor de fotografia, Benjamin Kracun, utiliza ângulos e focos para traduzir a sensualidade de Sue e, por outro lado, o ódio e medo de Elisabeth. Com esquemas de cores inteligentes e ampliação de lentes como fish-eye, closes desconfortáveis em comidas e gestos, tudo o que precisamos entender sobre o filme é dito sem uma única palavra.

Em A Substância, é possível ligar sua trama ao pensamento do sociólogo francês Pierre Bourdieu, autor da teoria dos “campos sociais”. Ela consiste em espaços estruturados dentro da nossa sociedade, sejam eles científicos, artísticos ou políticos, que, por meio do habitus, moldam e constroem novas visões de mundo de acordo com o campo social no qual a pessoa está inserida. No caso de Elisabeth, seu mundo é cercado por aparências fúteis e preconceitos etários, consistindo na ideia de que, ao chegar a determinada idade, a mulher perde completamente seu valor como indivíduo, sendo desvalorizada social e profissionalmente. Por estar inserida nesse meio, a visão de mundo da protagonista é moldada pelas vontades de agentes “superiores”, que impõem padrões estéticos em seu universo, como o personagem de Dennis Quaid, dono do programa em que Elisabeth era a grande estrela.

Em uma cena específica, me senti completamente angustiado. Ela não envolve violência gráfica ou algo do tipo, mas mostra apenas Demi Moore sozinha, se preparando para sair de casa e arrumando-se para um encontro. Não entrarei em detalhes para não estragar sua experiência, mas, ao ver essa cena, atentem-se ao quanto é doloroso assistir a uma mulher maravilhosa se odiar tanto.

Em uma era dominada pelo uso de Ozempic e remédios “milagrosos” prometendo “transformações”, A Substância surge como a resposta perfeita para um mundo insistente em impor padrões de beleza inexistentes, criados por figuras masculinas. É um filme difícil de digerir, em que, a todo momento, você se sente incomodado com o que está acontecendo em tela, seja pela violência gráfica ou psicológica. Mas, justamente por ser tão complicado de assimilar, é o que justifica essa história ser contada.

A Substância chegará aos cinemas do Brasil em 19 de setembro com distribuição da Imagem Filmes.

4.5

Ótimo

Com uma atuação brilhante de Demi Moore, A Substância traz uma história incômoda sobre os padrões estéticos impostos pela sociedade.